"Poema para a catástrofe do nosso tempo" - Alberto Pucheu
AVISO AOS NAVEGANTES
O poema que aqui se apresenta exige alguma disponibilidade de tempo do leitor. Se não tem tempo agora, reserve-o para outro momento.
Incentivo-o a ler um dos poemas mais explosivos e devastadores de nosso tempo. "Poema para a catástrofe do
nosso tempo" é fruto do esforço empreendido pelo autor para
sintetizar os acontecimentos entre as eleições presidenciais de 2018 e o início
da pandemia de Covid-19 no Brasil. Um poema híbrido que, ao costurar diversos
personagens e gêneros textuais, compõe um relato visceral do nosso tempo que
busca ir ao encontro e ao confronto da realidade catastrófica em que nos
colocamos, não apenas no Brasil, mas no mundo. Na obra, Pucheu amalgama um eu lírico que percorre a
cidade, lança sobre ela um olhar de perquirição, e, sobretudo, como ele mesmo
afirma, ouve suas vozes. Vozes anônimas, efêmeras, algumas impessoais, outras
cujos nomes reverberam nos poemas uma verdadeira polifonia existencial, como um
caleidoscópio que reflete as combinações variadas, plurais, contraditórias, em
tudo, intensas do tecido social. Um poema-manifesto que imprime em relevo o tom
elegíaco do nosso tempo, como enuncia o eu lírico, nos versos iniciais: “Amanhã
não será um dia melhor/do que hoje, que não é um dia/ melhor do que ontem”.
O tom melancólico, com efeito, está longe de flertar com a ideia de Adorno,
quando vaticinava a impossibilidade da poesia pós-Auschwitz; nem o eu lírico
pucheuniano evade-se da praça dos convites, para lembrar a
interrogação do poema de Drummond. Ao contrário, sua atitude e as linhas de
força de sua poesia são as de uma orquestração dessas vozes como signos da
inserção histórica (do passado imediato, do presente agônico e do futuro
imprevisível), política e existencial que se definem pela resistência
subjetiva do e no discurso poético. Pode notar-se que a acústica dessas vidas rasteiras, com suas tensões
intrínsecas e a reverberação de seus apelos e demandas, revelam o método de
colecionador benjaminiano de Pucheu, um pouco como Guimarães Rosa e seus
cadernos de anotações sobre o sertão e “os crespos do homem”. Para reger,
Pucheu desce o tablado, põe-se ao rés do chão, lado a lado, para melhor ouvir.
Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como poeta, publicou, dentre outros, Mais
cotidiano que o cotidiano (2013), Para que poetas em tempos de
terrorismos? (no Brasil e em Portugal, 2017) e Poemas para
serem lidos nas posses de presidentes (2019).
"Poema para a catástrofe do nosso tempo"
I
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Há um
sentimento fúnebre no ar,
de quem tem vivenciado
uma morte após a outra,
de quem tem vivenciado,
antecipadamente, mais uma
morte, a última delas, a morte
após a própria morte, a morte
da qual não se tem retorno,
a morte da qual os mortos
não voltam dela para a vida,
a morte a que apenas os vivos
se encaminham para ela
sem jamais poder voltar,
a morte da qual não se tem
poemas para se fazer,
não a morte simbólica,
mas a outra, a real,
a experiência final da morte
em vida, da qual sobrevivemos,
se tanto, ainda que neste mundo,
enquanto fantasmas desossados,
descarnados, desfigurados,
que berram na tentativa de evitar
a morte e de evitar, a todo custo,
0 comentários:
Postar um comentário