sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Mia Couto e a memória do monstro sueco

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A propósito de O Universo num Grão de Areia, uma conversa que lembra marcas importantes na biografia do escritor moçambicano – o pai, a Beira, as lutas políticas e a Biologia – que confessa: “Se tivesse os dois pés na literatura acho que enlouquecia”.

António Rodrigues (em Maputo)

31 de Outubro de 2019

Enquanto escreve um novo livro de ficção, ambientado na sua cidade da Beira, Moçambique, no fim do período colonial, Mia Couto publicou uma coleção de ensaios escritos ao longo da última década, a maioria para serem lidos em entregas de prêmios, conferências, apresentações. Com algumas arestas da oralidade limadas para se fazerem escrita, não deixam de ser textos com marcas que convidam à leitura em voz alta, que buscam o efeito na audiência, em deixar frases a ecoar nos ouvidos, ou não fossem, como explica previamente o autor, textos de “intervenção cívica”.

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Com um título que evoca o poeta William Blake, O Universo num Grão de Areia fala de arte, de cultura, de política, de mecanismos de escrita, de teatro, de Moçambique, do Brasil e de África e está cheio de referências biográficas (várias sobre o pai, o jornalista, poeta e editor Fernando Leite Couto), de histórias ilustrativas ou não fosse Mia Couto um respigador de histórias.
“Criatura de múltiplas fronteiras” a quem “os livros chegaram depois da vida”, Mia Couto sente-se marcado pela “felicidade” de ter sido “criança num desses universos em que o faz de conta mandava mais que a própria realidade”. E o seu lema de vida é uma frase do antigo Presidente do Vietname Ho Chi Minh sobre a sua passagem pela prisão: “O que eu fiz foi desvalorizar as paredes”.
Com tantos traços biográficos num livro de discursos, não admira que esta entrevista, realizada em Maputo, num desses finais de tarde africanos que rapidamente se torna noite cerrada, buscasse caminhos biográficos para se desenrolar.
Abre o livro com um texto sobre o seu regresso à Beira depois da passagem do ciclone Idai. Como está a relação com a cidade onde nasceu?
Este regresso, depois do que eu pensava ser um fim, foi absolutamente vital, não só para o livro que estava a fazer, mas para mim. A cidade pede uma espécie de regresso infinito. Sinto que aquela terra me fez nascer, mas é uma espécie de parto incompleto, tenho que voltar lá, num processo recíproco, porque faço também nascer a minha cidade, que não é exatamente aquela. Tem a ver também com a Beira ser um território que sempre me ensinou a fragilidade do mundo. A Beira, essa Beira em que eu vivi, de manhã era terra firme, ao fim da tarde estava cheia de água, coberta pelo mar – espécie de escola de como as coisas são voláteis. O mundo é uma coisa que temos de amar sem termos grandes certezas.
Saiu em 1972, esteve muitos anos sem lá voltar.
Só voltei uns 20 anos depois. Tinha medo de voltar, medo de que alguma coisa dela não fosse completamente verdade, que tivesse inventado demasiado o lugar. Ainda por cima, todos os que iam à Beira se confrontavam com uma cidade muito destruída. Aquela zona do centro do país foi o foco principal da guerra civil. E a cidade vivia da relação entre a Rodésia, depois Zimbabwe e os serviços ferro-portuários e isso morreu quando a economia zimbabueana morreu. Portanto, havia uma degradação do lugar que conhecia e que não queria revisitar, queria guardar aquela imagem de infância e adolescência. Acabei por ir, junto com outros amigos da Beira, e foi muito bom esse reencontro.
Como é a que relação evoluiu?
Fui revisitando a cidade, fui percebendo que a cidade tinha uma verdade que eu não tocara. Porque a sociedade colonial colocava a parte branca da cidade numa espécie de nuvem. Apesar de sempre ter vivido num lugar de trocas, naqueles bairros como o Esturro, Matacuane, lugares dos brancos mais pobres, zona tampão entre o mundo dos brancos e o mundo dos negros, nunca pertenci completamente ao outro lado; eu era um visitante. Nas vezes várias em que fui rever a cidade foi, sobretudo, para perceber a distância que havia entre mundos diferentes. Aquela cidade tinha várias cidades dentro.
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Com tantos traços biográficos num livro de discursos, esta entrevista, realizada em Maputo, num desses finais de tarde africanos que rapidamente se torna noite cerrada, procurou caminhos biográficos para se desenrolar GRANT LEE NEUENBURG

Já estava a escrever o livro sobre a Beira antes do ciclone, mudou alguma coisa depois?
Mudou dentro de mim. Dei-me conta, de uma maneira um pouco alvoroçada, que a cidade soube se refazer por ela própria, não ficou à espera de grandes donativos do exterior. Apanhara um susto, como se a minha cidade tivesse sido riscada do mapa e a minha infância levada por uma dessas marés que a cidade abraça todos os dias. Isso ajudou-me a encarar a história, mas não penso que tenha alterado muito o que queria fazer. Mas foi um tempo precioso para perceber quanto eu tinha de ser mais enxuto, mais contido na história.
É ficção?
É uma história de ficção que se baseia muito em personagens e lembranças minhas de entre 1971 e 1974, o último período da dominação colonial. A guerra era sentida como longínqua, como se acontecesse num outro país, apesar de sabermos que existia – pelos soldados que chegavam de Portugal, pelos soldados moçambicanos recrutados, mas que depois desapareciam, como se fossem para outro mundo. De repente, começou a haver ataques nas imediações da cidade e aquela sociedade percebeu que só podia haver resposta por via da loucura. A cidade enlouqueceu numa espécie de delírio permanente, em que todos os dias havia um boato, uma captação delirante do mundo. Quando se descobriu que os suecos apoiavam a Frente de Libertação de Moçambique – ao descarregar um barco da Suécia percebeu-se que havia ali material que era dirigido para a Frelimo –, imediatamente se anunciou um rumor de que havia suecos, saídos daquele barco, que espalhavam rebuçados envenenados para as crianças. E avisavam-nos: “Vocês, quando virem um sueco” e nós não sabíamos o que era um sueco e eu adormecia a imaginar esse monstro que era um sueco.
Como se vai chamar esse livro?
Não posso dizer, não porque não tenha títulos, mas porque todos os dias é diferente. À medida que vou percebendo o livro, vou criando balizas. Como não tenho muita disciplina e sou levado muito pelos personagens, aquela baliza do título ajuda-me a conter a história. Passou de um longo título, há duas semanas, que era Antes de nascer vi rios e mares, para Alguém. Mas sei que não vai ser assim, porque não é um bom título.
Quando será editado?
Para terminá-lo preciso de fazer só isso. Tenho uma vida muito dispersa. Sou biólogo, trabalho como biólogo todos os dias, colaboro em coisas culturais, mantenho uma fundação cultural e artística e escrevo. Portanto, tenho de ficar três, quatro meses só a escrever. Estou a pensar fechar-me num sítio onde possa só viver nesse livro. Como se emigrasse para aquele território imaginário. Se isso acontecer, em Fevereiro tenho o livro acabado.
“Se tivesse os dois pés na literatura acho que enlouquecia. Com o tratamento que dão quando se tem sucesso na literatura é muito fácil pensar que se é o centro do mundo, levar aquilo muito a sério e, sobretudo, levar-se muito a sério”

Família de ficção

Fala em O universo num grão de areia que a sua família era pequena. Num país como Moçambique, onde a família é extensa e muito alargada, como foi crescer assim?
Era uma coisa que me fazia sofrer, vivíamos ali como se a humanidade tivesse acabado de nascer, havia um Adão e Eva e não havia mais. Não conheci nenhum dos meus avós e isso me fazia falta. Todos os meus amigos tinham uma família mais ou menos alargada. Mas isso foi resolvido com a sapiência dos meus pais, faziam um jogo teatral, inventavam-se tios e primos e avós, o que foi fundamental para percebermos isso a que se chama ficção, que na minha casa era vivida como realidade.
Os seus pais emigraram para Moçambique. Foram diretos para a Beira?
O meu pai chegou primeiro. Aparentemente tinha atividades políticas na cidade do Porto e o regime colonial achava que, sendo Moçambique tão longínquo, os tipos que eram contra o regime ficavam aqui bem, sendo tão distante acabava por não existir. Aqui havia liberdades que não havia em Portugal. Os livros do Jorge Amado sempre foram vendidos aqui. Uma série de livros que estavam proibidos em Portugal circulavam aqui. O meu pai foi para a Beira porque ali tinha um núcleo de gente; para a Beira emigraram arquitetos do Porto que depois foram responsáveis por introduzir uma arquitetura mais ousada, menos conformada. Esse núcleo de gente depois criou o cineclube.
Quando em 1972 veio para Maputo, os seus pais também vieram?
Não. Vim sozinho primeiro, eles vieram já em 1974. Vivi numa república de estudantes, mas foi importantíssimo para mim ter saído de casa dos meus pais.
Como foi o choque da mudança da Beira para Maputo?
Maputo, na altura Lourenço Marques, era uma cidade completamente diferente, bem mais relaxada do ponto de vista das relações raciais, por exemplo. A Beira tinha dois modelos, os dois maus, os modelos do apartheid da Rodésia e o da África do Sul que reforçavam a ideia da separação racial. Então, senti-me perdido, no bom sentido. Fiquei um pouco embriagado. Havia uma luta e eu vinha, não para estudar, mas para me embrenhar nessa luta. Abençoado pelos meus pais, que não achavam isso um desvio, uma perda de tempo, principalmente o meu pai. Ele sabia que ia ser assim e eu sabia que tinha autorização dele para me perder desse curso e ganhar uma relação mais profunda com a vida, com a terra, com a liberdade, com lutas que ele também abraçava. Quando cheguei aqui, havia um movimento estudantil bem forte, que era, sobretudo, antifascista. Era um movimento de filhos de gente burguesa que tomavam como prioridade a luta pela democracia e tinham uma certa dificuldade em relacionar isso com a luta pela independência.
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O novo livro é uma história de ficção que se baseia em personagens e lembranças na beira de entre 1971 e 1974, o último período da dominação colonial GRANT LEE NEUENBURG

Havia também em Moçambique a ideia de uma independência liderada por brancos, à moda do que Ian Smith liderava na Rodésia?
Na Beira, era muito forte, era um movimento que fazia a apologia dos naturais, dos filhos de gente branca que já tinha nascido em Moçambique. A ideia de “nós, os brancos naturais de Moçambique, temos interesses divergentes de Portugal, mas também não temos os mesmos interesses da população negra, portanto, há uma outra via que pode ser traçada”. Em Maputo, isso não era muito claro, havia, mas com menos representação. Fui-me envolvendo em vários grupos de luta estudantil até que, a certo momento, eu e alguns colegas pensamos: “Isso só faz sentido se a nossa luta estiver em consonância com a luta da frente de libertação” e conseguimos ligações que nos apontaram para uma luta mais focada.

Luta sem glória

Mas a sua luta foi sempre intelectual ou pensou na luta armada?
Na altura, havia gente que se oferecia para a luta armada, eu nunca pensei nisso. Embora tivesse esse sonho – tinha um cartaz do Che Guevara e tudo. Eu só pensava em ter farda para conquistar as meninas [risos]. Porque quando chegava a altura de pensar em ter uma arma na mão, eu tremia. Em 1974, alguns dos meus colegas fugiram, foram para a Tanzânia e tiveram treino militar, mas, nessa altura, não fazia muito sentido, o regime colonial tinha caído e eu, como já tinha ligação à Frelimo, pedi instruções para saber onde devia ficar. Disseram-me que deveria fazer o curso de Medicina, mas logo a seguir veio outra instrução para me infiltrar na informação e foi o que fiz. Não tem nenhuma glória o meu período revolucionário. Só teve glória no sentido em que imaginava que tinha importância para aquela luta que podia mudar o mundo. Hoje percebo que a minha importância era muito relativa e que a luta tinha essa crença total porque era muito redutora, com uma análise muito simplista do mundo. Não a renego, mas acho que é preciso perceber onde falhamos.
O seu pai trabalhava num jornal na Beira?
Trabalhava e quando veio para Maputo, em 1974, veio trabalhar no Notícias. Houve uma altura em que trabalhava ele, o meu irmão mais velho e eu. O papel da informação nesse período da transição de Moçambique foi fundamental e acho que não está bem estudado. A Frelimo também se apropriou de uma história única – o que não foi feito diretamente pela Frelimo não existe –, mas há várias outras contribuições que foram importantes.
Também participou na criação dessa história mítica da Frelimo…
Sim, sou culpado. Não posso falar da Frelimo assim tão à vontade porque durante anos fui um dos construtores dessa ideia única de um movimento que não era capaz de olhar para o lado e perceber que há outros mundos.
Conta no livro que chegou a participar num retiro de poetas para escrever um novo hino para Moçambique?
Não é uma coisa que me envergonhe. A história é engraçada porque desmistifica muito aquela ideia sagrada de como os hinos são produzidos. Este foi produzido de uma maneira divertida. O Samora [Machel] tinha uma ideia muito militar das coisas que mandava fazer e deu ordem a quatro poetas e quatro músicos para se fecharem numa casa. Era uma mansão com piscina , com comida e bebida, num momento em que não havia nada. Eu fazia taparueres de comida que à noite entregava à Patrícia, a minha mulher, para levar para casa. Estávamos a viver tão bem que nos esquecíamos de porque estávamos lá. Mas produzimos propostas de hinos e uma dessas propostas foi aquela que ficou, de facto.
“Não sei onde está a fronteira entre o biólogo e o escritor de histórias porque a biologia que faço é muito ligada a pessoas. Eu não quero falar da paisagem só enquanto elemento natural, a paisagem é escrita e reescrita por aquela gente. Na minha concepção não existe uma árvore em si mesma, existe uma árvore na relação com as pessoas; e o mesmo para os bichos”
Por que não ficou no jornalismo e resolveu ir estudar Biologia?
Quis voltar para a universidade por várias razões, primeiro porque tinha um sentimento de que a luta que abracei não estava a produzir resultados verdadeiros, o discurso não era convincente: entre a prática e as palavras havia uma distância que não me agradava. Foi a altura em que começou a ser introduzido no país o esboço de formação de uma elite política copiada da União Soviética, com lojas especiais, com tratamento especial, e a legitimação de que “somos os donos da liberdade” – não me agradava. Depois, perdi o gosto pela profissão porque gostava de fazer reportagem, de andar pelo país fora a recolher histórias e perdia isso para ser diretor do jornal. Não tenho jeito nenhum para dirigir ninguém. E o jornalismo em que estava envolvido produzia a mentira de que éramos portadores de uma mensagem verdadeira, a única verdade.
E porquê a Biologia?
Ainda me inscrevi em Medicina, mas, felizmente, uma diretora da faculdade, a quem abençoo todos os dias, disse que tinha de começar do princípio, apesar de eu já ter feito dois anos e meio. Foi ótimo porque repensei e decidi-me pela Biologia, que é o que eu sempre quis e não sabia. Nasci com uma relação encantada com as árvores, com o espaço natural.

Um pé na biologia

Sempre manteve essa carreira de biólogo, mesmo com o sucesso como escritor?
Maldito sucesso se me afastasse disso! Gosto muito de ter esse pé noutro campo. Se tivesse os dois pés na literatura acho que enlouquecia. Com o tratamento que dão quando se tem sucesso na literatura é muito fácil pensar que se é o centro do mundo, levar aquilo muito a sério e, sobretudo, levar-se muito a sério. Não quero isso. Quero ter uma relação de quem vai lá visitar um amor que se tem, mas não vive naquela casa.
A biologia também lhe permite arranjar histórias?
Não sei exatamente onde está a fronteira entre o biólogo e o escritor de histórias porque a biologia que faço é muito ligada a pessoas. Eu não quero falar da paisagem só enquanto elemento natural, a paisagem é escrita e reescrita por aquela gente. Na minha concepção não existe uma árvore em si mesma, existe uma árvore na relação com as pessoas; e o mesmo para os bichos. Portanto, como a ecologia nos sugere, temos de encontrar a verdade das coisas não por via de essências, mas por via das relações. E é isso que a literatura também nos diz, as pessoas são o que são porque são parte de uma rede. Este país é muito rico e é difícil não ser escritor. Se as escutamos, as histórias ultrapassam a realidade.
Que influência teve o seu pai na sua escrita?
Muita. Sobretudo porque ele vivia de uma maneira poética. Era muito pouco normativo, era quase ausente, mas quando morreu, nós, os três irmãos, percebemos as grandes lições que nos tinha dado sem nunca falar especificamente nisso. Quando foi interrogado pela PIDE, ele ia todos os dias para o interrogatório e nós percebíamos que voltava amargo e sofrido, mas nunca falou disso. Preferia dizer, no caminho para cá vi um pelicano ou vi uma garça. O modo dele era o de valorizar aquilo que era pouco visível.
Como é que surgiu a ideia da Fundação Fernando Leite Couto, em sua homenagem?
Como fazia tudo mais ou menos calado e era um homem de uma modéstia enorme, quando morreu, recebemos umas duas, três centenas de cartas de jovens de vários pontos do país que saudavam o facto de o meu pai os ter ajudado a encontrarem na escrita um grande prazer e a publicarem – o meu pai foi também editor. E pensamos que isso tinha de continuar e de uma maneira mais institucional. Criamos a fundação para eternizar a obra dele. E sabíamos que era uma maneira de ele não morrer dentro de nós.
A fundação funciona com uma equipa profissional?
Começamos de maneira muito amadora, familiar, artesanal. A intenção era mostrar que não íamos fazer como os outros, pedir dinheiro e depois fazer. Queríamos ter uma coisa para mostrar, antes de bater à porta de financiadores. A grande intenção no segundo ano foi que o financiamento que passamos a receber permitisse contratar uma equipa profissional. E agora temos uma equipa que mantém um ritmo e uma dinâmica que nos faz orgulhar muito daquela casa.
Qual é a filosofia da fundação?
Apoiar não só os jovens da área da literatura, como o meu pai apoiava, mas estender isso a músicos, fotógrafos, artistas de todas as áreas, fazendo com que tenham ali um espaço e uma possibilidade de encontro. Vem um ceramista, pintor, fotógrafo, escultor conhecido e ocupa aquele espaço de exposição durante um mês. Com os fundos que conseguimos, a seguir convidamos um desconhecido. E assim permitimos que o espaço seja usado como trampolim para que esses jovens possam ter visibilidade. E fazemos isso na música, no teatro, etc. A ideia é que, sejam consagrados, sejam novatos, todos eles tenham um momento em que contam a sua história. Portanto, aquilo é uma espécie de fábrica de histórias. As pessoas têm contacto com a obra e também o contacto mais humanizado com o autor da obra.

O livro sofrimento

Lembra em O universo num grão de areia que Terra Sonâmbula foi o livro que mais lhe custou a escrever, o que é que representa para si esse livro hoje?
Foi o único livro que fiz em sofrimento. Todos os livros me dão imenso prazer a escrever, não sou daquele tipo de gente que sofre imenso para escrever, mas Terra Sonâmbula foi feito numa situação muito particular: a guerra estava ali, os meus colegas mortos estavam na minha memória e era como se fosse visitado por eles. Não tinha maneira de resolver o luto e esse livro foi uma forma de me libertar. Foi a catarse que tinha de fazer do horror dessa guerra.
Não voltou a esse livro?
Não tenho tentação de voltar a nenhum livro, pelo contrário, dou pontapés nesses personagens para ver se me libertam. Não tenho os livros construídos mentalmente, não tenho uma arquitetura da história, vou pelos personagens que me levam pela mão, tenho uma relação de sedução com eles e se não me liberto dos personagens estou sempre a contar a mesma história.
Afirma neste livro que “a escrita literária é uma sobrevivência da necessidade de nos formarmos caçadores”. É um caçador de histórias?
A caça é, sobretudo, um jogo de representações. A única vez que fui à caça com alguém profissional, vi como ele se transformava na própria presa, como se abandonava para perceber como a cabeça do antílope que estava a caçar funcionava. É um jogo fascinante. No fundo, a literatura faz isso, é um jogo de representações: queremos transformar-nos no personagem que estamos a perseguir.
No livro fala no Jorge Amado e na descoberta do português do Brasil como forma de encontrar a sua própria língua para contar as histórias de Moçambique.
O Jorge Amado acendeu uma luz e hoje, olhando para trás, esse português que ele nos dá dessa forma, apropriada, açucarada, já traz muito de África. O português do Brasil é diferente do de Portugal por grande influência africana e, portanto, nós estávamos a redescobrir uma coisa que já era nossa. Mas os meus grandes mestres são outros, o Guimarães Rosa, o João Cabral de Melo Neto, um pela via da poesia, o outro pela via da prosa, mas uma prosa poética que desconstrói a própria narrativa, a maneira de ver o mundo.
Como é que se necessitou do português do Brasil para descobrir a forma de escrever em Moçambique?
Os brasileiros, durante muitos anos, tentaram marcar a diferença, dizer o quanto eram diferentes numa língua comum, que era a língua do outro. Isso obrigou a um exercício da procura do diferente, mas de forma natural, usando a língua portuguesa sem a renegar, inscrevendo nela a dinâmica que está dentro do português para abraçar outras culturas.
E como é a sua relação com a literatura de Portugal?
Essa era a literatura que habitava a nossa casa. O meu pai era muito dado à poesia do Eugénio de Andrade, não sei se por ser da mesma cidade. Do Fernando Pessoa ao Mário Cesariny, Mário de Sá-Carneiro, mas, sobretudo, a Sophia de Mello Breyner – há ali uma luz, um sentimento de espaço que tem a ver com o mar e isso marcou-me muito, muito, eu não seria quem sou se não fosse essa literatura. Marcou-nos muito porque nascemos dentro dela.

Nyuisi e as eleições

No livro está o discurso que leu na cerimônia do seu doutoramento honoris causa pela Universidade Politécnica de Maputo, em 2016, numa cerimônia em que o Presidente Filipe Nyusi estava presente. Nele, referia-se ao chefe de Estado moçambicano como alguém que representava uma nova forma de ver a política, uma nova cultura. Três anos depois voltaria a dizer o mesmo?
Continuo a querer acreditar que sim. Ele começou de uma forma muito vigorosa e chamou todos os elementos críticos do poder, teve com eles reuniões e percebia-se que era parte do seu programa ouvir os que não estavam de acordo. Integrar na sua equipa gente que tinha observações críticas. A verdade é que vínhamos de um regime, com o Presidente Guebuza, em que ser crítico significava ser inimigo e o sentimento de alívio era tal quando este senhor se apresentou, querendo escutar os que pensavam de maneira diversa, que escrevi isso com toda a convicção. Não renego o que escrevi, mas acho que este Presidente tem de se desenvencilhar daquilo que o amarra para poder dar de novo passos mais firmes.
O que se passou nestas eleições não é um regresso ao passado?
Não sei exatamente o que se passou nestas eleições. Criou-se em Moçambique a ideia, por descrédito das próprias instituições, que o que se diz não tem de ser provado. Sobretudo se disser uma coisa que convém a um certo tipo de clamor. Acho que até há uma certa arrogância, eu não falaria das eleições noutro país com a facilidade que alguns que vêm de fora falam das eleições em Moçambique. Não defendo que as coisas tenham corrido todas bem, mas é preciso que as fraudes denunciadas sejam confirmadas. O meu receio é que se encorajam estas queixas e que estas eleições, em vez de resultarem em estabilidade, resultem numa nova guerra.
Acredita neste acordo de paz, assinado em Agosto por Nyusi e o líder da Renamo, Ossufo Momade?
Não sei, mas acredito que se tenha de o fazer, nem que depois venha o quarto e o quinto. O que não quero é que haja pretexto para que se aceite como natural que um partido com representação parlamentar tenha um exército e que quando não concorda com alguma coisa ameace com a guerra. E foi assim que a Renamo fez política durante anos. Muitos desses que hoje se apressam a ver problemas na direção da Frelimo nunca acharam isso anormal, nunca se apressaram a denunciar isto como algo inaceitável. Acho que houve aqui uma paciência ilimitada e uma incapacidade de resolver isto pela via militar e por muito que o Presidente Nyusi não tenha feito muita coisa noutras áreas, nesta fez alguma coisa que é exemplar, que tem de ficar na história deste país. Mesmo agindo contra o seu próprio partido, ele foi lá, falou, convidou a que o debate fosse político e se inviabilizasse a via militar.
Acredita que pode haver dentro da Frelimo quem, não concordando com este acordo e com a forma como foi negociado pelo Presidente, possa querer meter entraves a que ele seja cumprido?
Acredito que essas forças sejam hoje minoritárias, quer na Frelimo, quer na Renamo, mas que estão lá, estão. A guerra é uma tragédia para a maior parte das pessoas, sobretudo para os pobres, mas a guerra pode ser um fator de enriquecimento.
Não votou nas eleições de 15 de Outubro?
Foi a primeira vez que não votei nas eleições. Senti-me estranho.
O que achou da campanha violenta, do imbróglio em torno do recenseamento eleitoral?
Tenho uma posição dividida. A campanha teve violência, mas não sei se se pode dizer que foi violenta. Há uma certa tendência para generalizar. Eu estive um mês e meio fora de Moçambique, muito desta campanha me escapou, chegando-me através de notícias que falavam em mais violências e mortos. Uma delas era porque um carro se despistou e as pessoas morreram. Tudo isso estava misturado e fez criar a ideia que houve uma violência extrema. Não quero com isto minimizar a violência que houve…
A maior parte dos mortos foi por acidentes de viação, mas houve pelo menos sete assassínios, incluído a história mais conhecida da morte do ativista e observador eleitoral Anastácio Matavele.
Acredito que tenham sido forças ligadas ao governo e isso é inaceitável. Como acho mal a contagem dos eleitores em Gaza. Foi resolvido da pior maneira: ainda por cima sem lucro político, porque Gaza é um território tradicionalmente da Frelimo. Para quê descredibilizar aquilo que com quase toda a certeza seria uma vitória da Frelimo? Como disse o Lenine, a melhor maneira de atacar uma ideia de propósito é defendê-la de forma ridícula.
O Joseph Hanlon, do Centro de Integridade Pública, que acompanha os processos eleitorais em Moçambique desde 1994, escreveu que, na sua ânsia da vitória a todo o custo, esta foi a primeira vez que a Frelimo descentralizou o controlo eleitoral das eleições.
Tenho um grande respeito pelo Hanlon e preciso de ler melhor o que ele escreveu, mas falaram-me da interpretação que ele está a dar e tenho dúvidas que uma vitória desta dimensão, entre os 70 e os 80%, seja manipulada, é preciso uma fraude de uma dimensão monstruosa e é preciso desvalorizar aquilo que seria a presença dos observadores. Há uma instituição que está montada para prevenir isso: pode dizer-se que há casos já provados, mas em 20 mil mesas? Repare, não é só a Frelimo que ganhou, são, sobretudo, os outros que perderam. Este país precisava de uma oposição forte, construtiva, que funcionasse como alternativa e não existe. O [Afonso] Dhlakama morreu e havia a percepção que com ele morreria a Renamo. Depois da sua morte, percebemos que o rumo que tomou a Renamo a iria enfraquecer: rupturas, assuntos não resolvidos dentro do partido, que acabaram por resultar neste desastre. Nem sequer nas províncias onde tradicionalmente tem uma presença forte conseguiu ganhar. O MDM também é um partido que deixou de existir, mesmo na Beira, o seu grande coração.
Acha que estas eleições também mostraram, como escreve no livro, que este país ainda continua dividido numa dualidade extrema e é difícil a lucidez de tentar uma via equidistante?
Talvez um dos únicos lugares onde esta dualidade extrema não exista hoje é Portugal. Passei pelos Estados Unidos, passei pelo México, passei pelo Brasil, que é um caso extremo, em todos há tensões que fazem com que tudo seja branco ou preto, impedindo qualquer debate produtivo. Não há nenhuma intenção de debater projetos e programas políticos. A intenção é construir medos, consolidar a ideia dos monstros adversários e criar a ideia messiânica de alguém que nos salva do monstro.

Falta de serenidade

O livro tem uma carta, escrita em 2015, ao então presidente sul-africano Jacob Zuma por causa da violência xenófoba na África do Sul. A violência voltou agora à África do Sul e o populismo, um pouco por todo o lado, vai usando o outro como bode expiatório de todos os males. Esta vai ser cada vez mais a realidade do mundo?
Estamos a passar por uma fase muito atribulada para poder convocar a serenidade no estudo das situações, que são sempre mais diversas do que a gente pensa. A esquerda, onde me situo, é incapaz de se repensar, de se questionar e perceber que grande parte dos exageros da produção enviesada de lutas identitárias e fragmentadas alimentaram a extrema-direita. Essa esquerda forneceu à extrema-direita toda a lenha que ela precisava. Somos nós, a gente que sempre pensou que ia construir um mundo melhor, mais justo e mais humano, que temos de começar por fazer uma espécie de reajustamento. Por exemplo, a ideia das mudanças climáticas e a percepção existente de que o mundo está a terminar não é propícia à criação de uma consciência serena sobre o assunto, mas ao medo. A angústia do fim do mundo cria todo um território para haver fortalezas, para haver tribos, para haver discursos messiânicos: quem é que vem salvar tudo isto? É estranho que seja entregue a uma menina como a Greta Thunberg a liderança. Acho muito bem que ela esteja naquele pódio, a grande questão não é a presença dela, é a ausência de quem devia estar ali também. Por que razão não estão lá os outros, com toda a sua credibilidade?
Em Moçambique, há uma preocupação política com as alterações climáticas?
Acho que sim, mas de uma maneira que é também aquisição de um discurso de moda. A coisa funciona de forma perversa, é que se tiver um projeto para salvar meninos da miséria no bairro aqui ao lado ninguém dá dinheiro, mas se inventar uma coisa qualquer em que entre a mudança climática e os meninos, já lhe dão dinheiro. As mudanças climáticas existiram sempre e nunca poderemos esperar deste planeta uma situação de estabilidade. Se eu lhe disser agora que é preciso estudar até que ponto essas mudanças são realmente antropogénicas ou são mudanças que obedecem a um certo clima e fatores externos fico com medo porque há sempre alguém bem-pensante que acha que esse é um discurso que pode alimentar a direita, alimentar aqueles que negam as mudanças climáticas. Precisamos de ter um discurso firme, mas capaz de se auto-interrogar.
No livro escreve que “a maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos”. Moçambique é um país que fabrica ricos?
É. Nós não estamos a fabricar riqueza. Estamos aprisionados a uma economia que é de modelo colonial e não fomos capazes de inverter essa situação, de fazer uma administração em que primeiro se produza riqueza, com a preocupação de roubar à miséria os milhões de pessoas que em Moçambique continuam a viver nela. É preciso resolver isso de uma maneira mais firme. Não creio que a simples descoberta de novos recursos altere alguma coisa se não for alterada profundamente a maneira de se administrar a riqueza.
Fonte: Aqui

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