Feira de armas nos EUA tem de aula sobre fuzil a venda de livros infantis
Feira de armas nos EUA tem de aula sobre fuzil a venda de
livros infantis
ADRIANA KÜCHLER
07/10/2017
RESUMO Repórter visita duas das mais importantes feiras de armas dos EUA.
O frequentador típico é um homem branco com mais de 55 anos e que só fala
inglês, mas os eventos se esforçam para atrair famílias, inclusive crianças.
Entre as atividades estão aulas sobre o fuzil AR-15 e venda de livros infantis,
como "Meu Primeiro Rifle".
Dentro do complexo de 60 mil m2 onde ocorre o Great American Outdoor
Show, no fim do Hall de Esportes de Tiro e atrás do estande de uma loja de
armas de precisão, um garoto de dez anos vende livros infantis. Robert H.
Jacobs 3º é o nome dele, e seu pai é o autor. Há nove títulos à venda,
incluindo "Meu Primeiro Rifle", "Minha Primeira Pistola de Ar
Comprimido" e "Meu Primeiro Arco".
O pai do garoto começou a escrever livros depois de não encontrar
literatura sobre o tema para os filhos. Robert 3º ganhou sua primeira arma
quando tinha cinco ou seis anos. Hoje, ostenta com orgulho uma pistola de ar
comprimido, um rifle calibre 22 e dois arcos. O menino afirma gostar de caçar
"quase tudo: antílope, alce, essas coisas".
Robert 3º se sentiu bem ao matar um antílope, ele conta, mas
revela que quem matou mesmo foi seu pai. Na verdade, ele nunca matou um animal
com arma, só pássaros com estilingue. Ele diz que, ao matar um bicho, você tem
sentimentos confusos. "Quando [o presidente americano] Teddy Roosevelt
matou um esquilo, ele parou de caçar. Ele sentiu emoções contraditórias."
Os livros do pai de Robert ajudam os jovens caçadores a se
preparar para momentos como esse. No site em que vende suas obras, Robert pai
explica que, para garantir um futuro para a caça e os esportes de tiro, é
essencial recrutar hoje os caçadores de amanhã.
Os Robert são um dos 1.100 expositores que atendem aos 200 mil
visitantes do Great American Outdoor Show (a grande feira americana de
atividades ao ar livre) em 2016. Realizado anualmente durante nove dias de
fevereiro, em Harrisburg, capital da Pensilvânia, essa é a maior feira de caça,
esportes de tiro, armas e pesca do mundo, segundo a organização.
Em anos eleitorais e após tragédias —como o massacre da escola Sandy Hook, em 2012, ou o ataque de Las Vegas no
domingo (1º), quando um homem matou 58 pessoas e feriu mais de 500—, a mídia
americana abre espaço para discussões sobre a necessidade, a futilidade ou a
insensatez do controle de armas no país.
Enquanto isso, os visitantes das inúmeras feiras de armas dos EUA
consideram esse tipo de evento um modo de reafirmar sua cultura e seu estilo de
vida. Para eles, armas não têm a ver com violência, e sim com tradições, esporte e
recreação.
Não se conhece o número exato de armas nos Estados Unidos. De
acordo com um relatório do Congresso, de 2012, os americanos acumulavam 310
milhões de armas de fogo em 2009. Segundo estimativa do jornal "The
Washington Post", o país atingiu 357 milhões de armas em 2013, mais do que
pessoas (317 milhões).
Somando 4,43% da população mundial, os americanos eram donos de
42% das armas privadas do mundo, segundo dados de 2007 da organização Small
Arms Survey.
AULA DE TIRO
Na feira, é quase impossível não se perder, tentando achar um
caminho entre a loja da Smith and Wesson, no Hall de Esportes de Tiro, e a Zona
de Diversão para Famílias, no Hall de Caça, tropeçando no trajeto nos estandes
da Federação Nacional do Peru Selvagem, dos Caçadores com Arco Cristãos da
América ou da famosa NRA (Associação Nacional do Rifle).
Entre as atrações da loja da NRA estão um kit de sobrevivência
para cinco dias (US$ 80, ou cerca de R$ 260), com "32 porções de comida
gourmet e leite", babadores da NRA para bebês, um acendedor de churrasco
"resistente a crianças" no formato de um fuzil AR-15 e canecas em que
a palavra "coexistir" aparece escrita com armas e balas.
Fundada em 1871, a NRA lidava com assuntos de caça e esportes de
tiro. Só em meados dos anos 1970 a organização tornou-se o que é hoje: o
principal grupo de lobby pró-armas no país. Atualmente, os dois focos —político
e recreacional— convergem em eventos como o Great American Outdoor Show.
Para aprender sobre o assunto, decidi assistir à palestra
"Entendendo o AR-15". Quando o palestrante pergunta quem na sala tem
um AR-15, sou das poucas pessoas que não levanta a mão. "Qual é o problema
com vocês? Não são americanos?", indaga Pat Rogers, oficial aposentado dos
fuzileiros navais e da polícia de Nova York.
Como tantos outros, Rogers fala da Segunda Emenda da Constituição
americana. "Nossa Constituição diz que o direito de ter e portar armas não
deve ser infringido. Diz que devemos ter uma arma, e a inferência é que é uma
arma que os militares usam. Isso é o que os militares usam", diz,
apontando para seu AR-15. "Como os militares usam, é popular."
Ele ainda credita a popularidade do AR-15 à sua versatilidade.
Serve para caçar, para competições de tiro, é ergonômica, barata e fácil de
usar. "Tudo que uma pessoa precisa numa arma", diz.
De 1994 a 2004, uma lei proibiu a venda de AR-15 e armas
similares. Alguns Estados ainda impõem restrições à venda; outros, como Nova
York, baniram o comércio desse tipo de equipamento depois do atentado de Sandy
Hook.
Após o ataque de Las Vegas, começa a ser discutida a proibição da
venda do "bump stock", artefato usado pelo atirador, que aumenta o
poder de fogo de uma arma e pode ser comprado com facilidade.
QUESTÃO CULTURAL
Feiras de armas, chamadas "gun shows", são tão populares
que é impossível saber quantas existem no país. O governo estima entre 2.000 e
5.200 eventos como esse por ano. Dados de 1998 revelam que 10% deles estão no
Texas, onde uma lei que permite porte ostensivo começou a vigorar em janeiro de
2016.
Naquele mês, a "maior feira de armas do Texas", o Dallas
Gun Show, atraiu cerca de 8.000 visitantes num fim de semana. Ali, uma
variedade de artefatos é vendida ao lado de camisetas com os dizeres "Fuck
Isis". Balas e Bíblias é o nome de uma loja que vende esses dois artigos
juntos. Adesivos trazem mensagens como "Mate os bandidos como um campeão
hoje" e "Eu corro em direção às balas".
No estande da Associação pelo Porte Ostensivo, sou informada de
que posso obter uma licença com um curso de três horas –sem ter de atirar com
uma arma de verdade.
Javier ("Você não vai conseguir muitos sobrenomes aqui. As
pessoas são paranoicas") está ali só para acompanhar o pai. Diz que já tem
todas as armas de que precisa. "Acho que o ideal são uma ou duas pistolas,
um ou dois revólveres, uma ou duas espingardas e um ou dois fuzis. Eu tenho
umas seis."
Ele tem na ponta da língua uma lista de motivos que fazem alguém
precisar de armas: para proteger suas casas, para caçar, para colecionar, para
praticar tiro. "Em lugares populosos, como Nova York, não é preciso ter
armas. Então eles dizem para os demais: 'Nós não queremos armas'."
Poucos dias antes daquela feira, o então presidente Barack Obama
havia anunciado sua intenção de aumentar a checagem de antecedentes na compra
de armas. Ele já havia tentado implantar medidas semelhantes após diferentes
atentados. O resultado quase sempre teve o efeito oposto ao esperado.
Após massacres como o de Las Vegas, os americanos ficam
preocupados com a violência, e as vendas de armas aumentam. Em dezembro de
2015, depois que 14 pessoas morreram em um atentado em San Bernardino, na
Califórnia, venderam-se 1,6 milhão de armas. O único mês com mais armas
comercializadas nos 15 anos anteriores (2 milhões) foi janeiro de 2013, logo
após o massacre de Sandy Hook e a reeleição de Obama.
MITO AMERICANO
No livro "Gun Show Nation - Gun Culture and American Democracy"
(nação das feiras de armas - cultura de armas e democracia americana), Joan
Burbick, professora emérita da Universidade Estadual de Washington,
pesquisadora de cultura do Oeste americano e de narrativas nacionais, reflete
sobre como as armas estão impregnadas na identidade de seu país.
Em conversas e entrevistas com donos de armas, percebeu que muitos
deles se orgulham de pertencer a um "país de armas". "A maioria
das pessoas com quem conversei tem uma versão muito 'Hollywood' ou 'Velho
Oeste' do passado. Eles romantizaram a mitologia nacional", diz Burbick.
"Então, você não está falando sobre história, mas sobre narrativas
nacionais. O discurso do patriotismo ligado à posse de armas é muito emocional,
fantasioso."
Para Burbick, o debate sobre armas é dificultado pela distância entre os
dois lados. "Parte do problema é que temos uma população urbana que não
sabe nada sobre armas, e temos pessoas que são fanáticas por armas, que têm até
500 em casa. Existe um abismo gigante entre essas pessoas."
Segundo o estudo "Posse de Armas e Cultura Social de
Armas", de 2015, 29% da população que vive nos EUA tem armas, e a posse é
2,25 vezes maior entre os envolvidos com a chamada cultura das armas.
A professora Bindu Kalesan, da Universidade Columbia e da
Universidade de Boston, liderou uma das raras pesquisas acadêmicas das
principais universidades sobre o tema. O que mais a surpreendeu foi descobrir
que 27% das pessoas que não possuem armas pensavam em comprar uma no futuro. Se
eles botarem a ideia em prática, diz Kalesan, metade da população do país vai
estar armada em breve.
O estudo também confirma algo óbvio para quem visita um "gun
show": o típico dono de armas é um homem branco, com mais de 55 anos e que
fala só o inglês.
Entre os poucos estrangeiros que vendem viagens de caça aos seus
países de origem no Great American Outdoor Show, ao menos um está acostumado
com Harrisburg. Gonzalo Martínez, um ginecologista argentino que leva
"carpe diem" tatuado nas costas, promove um território de caça de
aves no Norte da Argentina, enquanto bebe mate com o sócio Peio Arrosagaray,
urologista espanhol que adora caçar e quebrar pedras nos rins.
Em 1993, quando tinha 18 anos e sonhava se alistar no Exército,
Martínez fez intercâmbio na cidade de Millerstown, vizinha de Harrisburg. Seu
"pai" americano escolheu o argentino porque ele escreveu
"caça" como uma de suas atividades favoritas.
Quando voltou para a Argentina, Martínez desistiu da carreira
militar, mas não de caçar. Os dois doutores-caçadores destacam, no entanto, que
a cultura de caça em seus países é totalmente distinta da cultura de armas dos
EUA.
"Lá, caçar é uma atividade de elite. Aqui, o negócio é
massivo, um estilo de vida. Quem organiza esse evento é a NRA. E políticos
ganham eleições graças à NRA. Você já foi ao hall de armas? Eles estão
oferecendo armas com silenciadores", diz Martínez. "Armas de
guerra!", replica Arrosagaray.
"Todo império cai", diz Martínez. "E esse país vai
cair em algum momento, porque eles estão totalmente loucos."
ADRIANA
KÜCHLER, 36, editora-adjunta de Cultura da Folha, é mestre em jornalismo
em artes e cultura pela Universidade Columbia.
Este
texto é uma adaptação de trabalho apresentado em 2016 como conclusão do
mestrado em jornalismo em artes e cultura na Universidade Columbia. A versão
original em inglês pode ser lida aqui.
FONTE: Aqui
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