quinta-feira, 6 de março de 2014

Nós, os humanos verdadeiros

Precisei escutar o discurso do bem. O que dizem aqueles que acorrentaram um menino negro a um poste com uma trava de bicicleta no Flamengo, no Rio, em 31 de janeiro. Aqueles que cortaram sua orelha, aqueles que arrancaram suas roupas. O que dizem aqueles que defendem os jovens brancos que torturaram o jovem negro. Eu sei que os homens e as mulheres que evocam o direito de acorrentar adolescentes negros em postes, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas porque se anunciam como homens e mulheres de bem – e homens e mulheres de bem podem fazer tudo isso – estão ao meu redor. Eu os encontro na padaria, os cumprimento no elevador, agradeço a eles quando me permitem atravessar na faixa de segurança. Eles estão lá ao ligar a TV. Mas o que eles dizem que é preciso escutar?
O discurso do bem cabe em poucas frases. O Estado é omisso. A polícia é desmoralizada. A Justiça é falha. Diante desses fatos, e todos os fatos são sempre inquestionáveis no discurso do bem, acorrentar jovens negros em postes com trava de bicicleta, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é um direito de legítima defesa dos cidadãos de bem. Se quiserem torturar o menino negro, como fizeram, eles podem, assegura o bem. Se quiserem matá-lo, eles podem, também. E alguns o fazem. Meninos negros não são meninos. Não é preciso investigação, não é preciso julgamento, não é preciso lei. Os cidadãos de bem sabem, porque são a lei. Também são a justiça. O menino é um marginalzinho, é também um vagabundo, diz o bem. E bandido bom é bandido morto, garante o bem. Se você não pensa assim, o bem tem um pedido a lhe fazer: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. Simples, direto, objetivo. O discurso do bem orgulha-se de ser simples, orgulha-se de só ter certezas. A dúvida atrapalha o bem. E o bem não deve ser perturbado. E como duvidar que acorrentar um menino negro a um poste pelo pescoço, cortar a sua orelha e arrancar suas roupas é o bem?
Para ler o texto completo de Eliane Brum clique aqui

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