segunda-feira, 6 de maio de 2024

"Poema inacabável" - Manuel de Freitas

 



Poema inacabável

 




Many loved before us, I know


that we’re not new…


– podia começar assim,


com uma dessas canções


profanas e furibundas


a que se regressa sempre


nos partidos tempos da vida.



Mas não creio que o alento possa voltar


a ser o daquelas manhãs de junho


em que uma despedida precoce ditou leis


que eu cumpri demasiado bem.


Que tem isso a ver contigo, dirás,


e a resposta cala-se no meu peito,



asfixia lentamente nas sílabas


do teu nome em forma de punhal,


enquanto eu, o próprio, ando por aí


a ver passar os navios que já não passam


e a preparar tabernas disponíveis


para a velhice que virá.


Já não sou, acredita, esse príncipe



de um reino que quis imundo e breve.


E sei agora que as algemas do amor


doem mais quando os pulsos mal abertos


calafetaram a memória numa travessa


sem espera. De pouco serve importunar-te:



és apenas o álibi dilacerante


de um poema que eventualmente terá


alguma coisa a ver comigo, nada


que mereça a pena que aliás nada merece.



E hás-de ter uma vida, uma família, um cão,


como toda a gente tem mesmo que não tenha,


inventando paliativos cheios de calor,


do sossego, que nunca curaram ninguém


da peste real do amor: esta vontade


de beber por mãos alheias o sangue derramado,


suspenso num sorriso em chamas


sobre o qual já tudo foi dito e ainda nada.



Que te protejam, na noite serrada,


as mais frias certezas e a boca da catástrofe


que não beijou nem quis o poema inacabável.



Manuel de Freitas




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