quinta-feira, 4 de agosto de 2022

"Tríptico" - Herberto Helder


 



Tríptico

 

 



I

 



Transforma-se o amador na coisa amada com seu


feroz sorriso, os dentes,


as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído


e silêncio. Traz o barulho das ondas frias


e das ardentes pedras que tem dentro de si.


E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado


silêncio da sua última vida.


O amador transforma-se de instante para instante,


e sente-se o espírito imortal do amor


criando a carne em extremas atmosferas, acima


de todas as coisas mortas.



 

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.


E a coisa amada é uma baía estanque.


É o espaço de um castiçal,


a coluna vertebral e o espírito


das mulheres sentadas.


transforma-se em noite extintora.


Porque o amador é tudo, e a coisa amada


é uma cortina


onde o vento do amador bate no alto da janela


aberta. O amador entra


por todas as janelas abertas. Ela bate, bate, bate.


O amador é um martelo que esmaga.


Que transforma a coisa amada.



 

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher


que escuta


fica com aquele grito para sempre na cabeça


a arder com o primeiro dia do verão. Ela ouve


e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito


do amador.


depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,


dá-lhe o grito dele.


E o amador e a coisa amada são um único grito


anterior de amor.



 

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito


de amador. E ela é batida, e bate-lhe


com o seu espírito de amada.


Então o mundo transforma-se neste ruído áspero


do amor. Enquanto em cima


o silêncio do amador e da amada alimentam


o imprevisto silêncio do mundo


e do amor.



 

 

II



 

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura


e a atenção começa a florir, quando sucede a noite


esplêndida e vasta.


Não sei o que dizer, quando longamente os teus pulsos


se enchem de um brilho precioso


e estremeces como um pensamento chegado. Quando,


iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado


pelo pressentir de um tempo distante,


e na terra crescida os homens entoam a vindima


-- eu não sei como dizer-te cem ideias,


dentro de mim, te procuram.



 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros


ao lado do espaço


e o coração é uma semente inventada


em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,


tu arrebatas os caminhos da minha solidão


como se toda a casa ardesse pousada na noite.


-- E então não sei o que dizer


junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.


Quando as crianças acordam nas luas espantadas


que às vezes se despenham no meio do tempo


-- não sei como dizer-te que a pureza


dentro de mim, te procura.



 

Durante a primavera inteira aprendo


os trevos, a água sobrenatural, o leve abstrato


correr do espaço --


e penso que vou dizer algo cheio de razão,


mas quando a sombra cai da curva sôfrega


dos meus lábios, sinto que me faltam


um girassol, uma pedra, uma ave -- qualquer


coisa extraordinária.


Porque não sei como dizer-te sem milagres


o que dentro de mim é o sol, o fruto,


a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,


o amor,


que te procuram.



 

 

III



 

Todas as coisas são mesa para os pensamentos


onde faço minha vida de paz


num peso íntimo de alegria como um existir de mão


fechada puramente sobre o ombro.


-- Junto a coisas magnânimas de água


e espíritos,


a casas e achas de manso consumindo-se,


ervas e barcos altos -- meus pensamentos criam-se


com um outrora lento, um sabor


de terra velha e pão diurno.



 

E em cada minuto a criatura


feliz do amor, a nua criatura


da minha história de desejo,


inteiramente se abre em mim como um tempo,


uma pedra simples,


ou um nascer de bichos num lugar de maio.



 

Ela explica tudo, e o vir para mim --


como se levantam paredes brancas


ou se dão festas nos dedos espantados das crianças


-- é a vida ser redonda


com seus ritmos sobressaltados e antigos.


Tudo é trigo que se coma e ela


é o trigo das coisas,


o último sentido do que acontece pelos dias dentro.


Espero cada momento seu


como se espera o rebentar das amoras


e a suave loucura das uvas sobre o mundo.


-- E o resto é uma altura oculta,


um leite e uma vontade de cantar.



 

 

 

Herberto Helder




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