O inverno do traidor
Prezado presidente
Marcelo Rebelo Sousa, Sempre fui um admirador
de sua postura franca, mesmo não concordando com todo seu posicionamento
político. Mas isso, numa democracia, jamais deveria motivo de confronto. E é
justamente por conta da fragilidade de nossa democracia que lhe escrevo esta
carta. O senhor e outros chefes
de estado da comunidade lusófona foram convidados pelo presidente Jair Bolsonaro para as comemorações do 7
de Setembro. Mas, como o senhor deve
já saber, sua presença será amplamente manipulada. Não haverá uma comemoração
de nossa independência. Mas um sequestro da data pela extrema direita para
justificar mais um triste capítulo de nossa história. A bandeira brasileira
estará por todas as partes, orgulhosamente exposta e sorrateiramente
sequestrada enquanto parte de nós estávamos distraídos. Mas a verdade,
presidente, é que entregamos nossa soberania. Quem está hoje no poder no
Brasil prestou continência a outras bandeiras, aceitou entendimentos
comerciais que prejudicavam setores inteiros da economia nacional, ameaça
esfarelar o Estado de direito e se submeteu às orientações de movimentos de
extrema direta pelo mundo. Se é verdade que da
traição nascem poemas, apenas posso imaginar que teremos uma era de ouro na
literatura brasileira nos próximos anos. Afinal, como caracterizar o atual
governo senão como um ato de traição coletiva, usando os instrumentos da
democracia para desmontá-la. Duzentos anos depois de
romper com Portugal, o Brasil vê também sua soberania corroída pelo crime
organizado, que assume os rincões mais distantes do país e os transforma em
estados paralelos, sob os aplausos de cúmplices vestidos de autoridades. O
estado milícia ganha terreno e também declara sua independência. Uma data como a de
2022 deveria ser a ocasião para que façamos, de forma conjunta, um exame de
consciência, uma busca por reconhecimentos mútuos de fracassos e êxitos. E,
acima de tudo, para que tenhamos a coragem de traçar caminhos para levar
"novos mundos ao mundo", como vocês diriam. Neste caso, esse caminho
seria o de levar a independência aos milhões de brasileiros que continuam
escravizados pela fome, estuprados pela miséria, açoitados pela ausência de
estado e cegos pela frustração de não encontrar "na linha fria do
horizonte" os "beijos merecidos da Verdade". António Ramos Rosa falava
da "pátria de metamorfoses incessantes" ao se referir ao mar. Mas
essa é uma definição que bem poderia ser usada à brasilidade. E, nestas
revoluções permanentes, vivemos hoje uma encruzilhada. A escolha não é
difícil. Mas ela exige a coragem que seus navegantes nos ensinaram a ter ao
longo de séculos para enfrentar os demônios mitológicos cartografados em
mapas líricos. E o senhor, como num
conto do realismo mágico latino-americano, é convidado a fazer parte deste
momento. Ouvi dizer que a FAB vai
trazer ao Brasil o coração de dom Pedro que está preservado em vossas terras
e não entrou em combustão nos incêndios que devastaram nosso acervo do
passado —e nosso sonho de futuro. Se aqui eu puder lhe pedir algo só entre
nós, aproveite e apronte uma boa piada com o governo brasileiro. Sei que
outra característica sua é o bom humor. Então, num pacotinho bem
escondidinho, "manda novamente algum cheirinho de alecrim". Alguns de nós
entenderemos. Seria giro. Nossa história comum
se confunde com sangue e arte. Agradeço-lhe para sempre por ter-nos exportado
a palavra saudades, pela poesia, pelo gosto do mar, pela mesa generosa.
Agradeço um pouco menos por ter-nos ensinado o que é a burocracia. Mas este não é o momento
de ser tão ingrato. "Não esqueças quem te amou e em tua densa mata se
perdeu e se encontrou." Prezado presidente, É decisão soberana do
senhor pisar ou não em terras brasileiras neste momento. Uma ausência seria
tão presente quanto uma viagem cruzando o mar do destino que nos une. Uma
presença responsável seria tão épica quanto abrir um novo capítulo neste
destino que busca um porto seguro para a democracia. Apenas lhe peço, humildemente,
muita sabedoria e um compromisso com nossa independência. Desta vez, não me
refiro à independência em relação aos colonizadores. Mas de nossos próprios
demônios. Os mitológicos e os reais. Saudações democráticas, Jamil Chade |
Fonte: UOL
(06/08/2022)
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