sexta-feira, 1 de abril de 2022

"Elegia do Z" - Flavio Aguiar

 





Elegia do Z

 

 



 

 

 

Em Berlim a letra “Z” está sob suspeita

 



 

 

 

 

Li, com certo espanto, mas não muito,


Dados os tempos em que vivemos,


Que em Berlim a letra “Z” está sob suspeita,


Por ser usada pelos tanques russos


Como identificação na guerra aqui por perto.


Ela pode ser usada, mas com moderação,


Dependendo da circunstância e da ocasião,


Sempre a critério da autoridade


Que, dizem, saberá usá-lo com precisão.


Minha companheira Zinka Ziebell


Ficou preocupada, e eu também:


Serão dois “Zês” no nome um excesso,


Um sinal de exagero na expressão,


Uma herança maldita dos ancestrais


Que pode levá-la até à prisão?


Com tais receios na mente


Passei uma noite febril e fremente


Com sonhos no varejo e no atacado.


Num deles, com horror eu via


O alfabeto deitado em mesa de cirurgia


Como naquele célebre quadro


Da Lição de Anatomia,


Sendo esquartejado por sérios doutores,


Sem gargantilha, mas de colarinho branco,


Embora alguns envergassem a toga


Quais fossem juízes de laço e tesoura.


Quis correr às letras, em seu socorro,


Mas me detive ao ouvir um dos doutos


Pronunciar com ar grave e soturno:


“Comecemos proibindo ‘A marca do Zorro’”,


Ao que outro, pondo sobre o Z seu coturno,


Respondeu: “é boa medida, e também,


Ponhamos em nossa agenda


Proibir ‘O prisioneiro de Zenda’”.


O pé sobre o “Z” causou grande tumulto


Sobretudo nas letras próximas:


Tremeram o “Y”, o “X”, com razão,


Pois logo foram levadas de roldão


Na implacável razzia


E sem qualquer culpa formada:


Seu dolo era serem letras, mais nada.


Uma se foi por ser o “X” da questão,


E a outra por ser a letra inicial


De nomes como Yuri, Yashin,


Levando juntos no mesmo abraço


Cosmonauta e goleiro, submetidos,


No pescoço, pelo mesmo baraço.


E logo outro douto sugeriu:


“Cortemos também o ‘V’ de Vladimir,


E o ‘P’ de Putin não há de sobrar!


E mais adiante sugeriu um mais afoito:


“Voltemos aos velhos tempos,


Cortemos também o ‘L’ de Lênin


E o “T” de Trotsky, o “M” de Maiakovsky,


O ‘D’ de Dostoievsky e o ‘Ch’ de Chostakovitch”.


Distante, a tudo observava o “A” arrogante,


Pensando: “É tudo muito longe…


Afinal, trata-se do “Z”, dos confins do alfabeto…”


Mas logo um novo censor, com ar muito matreiro


Foi dizendo, com jeito de brasileiro frajola:


“Mandemos pro balaio o ‘B’ de Brizola,


Político esperto que nem saracura,


‘B’  que também é de Baiano, antigo apelido


De Luiz Inácio da Silva, o Lula”.


E assim foram caindo, uma a uma,


Todas as letras, sem exceção…


Não escapou de tal sanha desabrida


Nem mesmo o “Z” de “orgasmo”


Retalhado por censor de incontido


Esgar, com satisfeito espasmo.


No imenso alarido de desolação


O “H” ficou mudo, pensando assim escapar.


Mas a fuga foi só uma vã ilusão


Pois logo um censor o agarrou pelas aspas


Vociferando: “estás em Hiroshima,


Em Holocausto, e nos muitos massacres do Hebron,


Coisas que devemos banir da lembrança,


Antes que com sua dolorosa presença


Nas mentes façam muita lambança”.


Já estava tudo demais de quieto


Quando surgiu uma letra muito apressada:


Era o “U” querendo fazer uma delação premiada!


Foi acolhido por um censor togado


Que declarou, sem se fazer de rogado,


Com ar de sibilino monge:


“Eu sou o conhecido juiz Conge,


Com meu brilhante assistente


Espevitado e magro como um anzol,


O famoso doutor Daranhol.


Dize-me o que queres delatar


E teu caso vou então ajuizar”.


“Pois veja”, disse o “U” todo trêmulo,


“Sou o U de Ucrânia e para merecer vosso perdão


Denuncio meu êmulo co-irmão,


O “U” da palavra Rússia: este sim


Deve ser banido por subversivo”.


Depois de rápida conferência


Com seu preclaro assistente,


Manifestou-se assim o douto censor,


Demonstrando ajuizado crivo:


“Ide em paz, U de Ucrânia;


Acolhemos tua denúncia


Pois nesta palavra és


De inocente pronúncia.


De resto, se condenamos o ‘Z’ dos tanques,


Saudamos o Z de Zelensky, nosso herói da ocasião;


Vós sois, como o ditado prega,


As nobres exceções


Que confirmam a regra!”


Mas não parou por aí o massacre


Perpetrado por aquela gente


Vetustamente vestida como um Quacre.


E assim foram banidos


De todos os livros de Geografia


Lugares como Zanzibar, Zâmbia, Zimbábue,


E como se fossem bandidos


Foram riscados dos livros de Filosofia


Gente como Zoroastro e Zaratustra,


E ainda que fossem ariscas


Todas as zebras perderam suas riscas


No livro de Zoologia, que passou a chamar-se


Tão somente Oologia.


A “Zabumba” saiu da Música,


E como na antiga lenda


Zumbi preferiu jogar-se de um penhasco


A ver-se de novo escravizado


Por aqueles senhores de ódio e asco.


Em meu sonho eu já estava atarantado


Com aquela loucura desatada


Quando vi um pouco mais adiante


Outra mesa de cirurgia,


Em que idêntica operação se fazia,


Retalhando e matando outro alfabeto.


Embora estranho para mim


Reconheceu meu conhecimento empírico


Que tratava-se do alfabeto cirílico,


E sem conhecer a língua que usavam


Minha consciência já tão aflita


Pode ver que os outros censores


Falavam com sotaque moscovita…


“Guerra é guerra”, pensei


Com meus tristes botões,


“Trata-se de entronizar a insânia


E de banir com feroz impaciência


Toda forma de inteligência,


Reduzindo a um branco e preto iracundo


Toda a riqueza colorida do mundo”.


Notei que os alfabetos assim destroçados


Pegavam fogo e deles as cinzas juntas caíam


Em jazigo comum depressa cavado.


Aproximei-me do buraco maldito


E vi que naquele borralho improvisado


Algumas brasas ainda bruxuleavam


Depois de passarem por tais Inquisições desalmadas.


Vi, com renovada esperança,


Que ali ardiam, como almas penadas,


O “Z” em “Poesia” escondido,


O “Z” de “Ousadia” disfarçado,


E também o “Z” de Zênite declarado.


E dali elas e outras letras foram se elevando


Por um celeste Zimbório protegidas,


Fugindo das garras dos perseguidores


E no meio delas reluzia


A palavra Liberdade – ainda que tardia.

 

 



 

 

 

Flavio Aguiar




 

 

 



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