segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

"Somos todos migrantes" - fernando rios

Resultado de imagem para foto de criança imigrante morta na praia


Somos todos migrantes

I
poema/peça de teatro
em dois, três, quatro atos
ou quantos forem necessários
para despertar a indignação
e acender a consciência

por que escravizar o outro?
por que ignorar o outro?
por que segregar o outro?
principalmente
quando ele está faminto
bem ao lado
e nós de barriga cheia
contemplando...
apenas o próprio umbigo


II
personagens:
cada um de nós e os nós do mundo
que precisamos desatar

do gelo ao deserto, no mar, na montanha
tímidos ou rompantes
precisamos ver melhor
que despautérios egoisticamente
cometemos ao redor

III
minha pele é branca
e já foi negra
minha pele é vermelha
e já foi negra
minha pele é amarela
e já foi negra
minha pele é cinza
e já foi negra
minha pele é marrom
e já foi negra
minha pele é qualquer pele
e já foi negra

de que cor sou eu?
e quem me deu
esse poder epidérmico
que escorre entre os dedos
sem qualquer fundamento?

minha pele é negra, sempre foi negra
e por ser negra, alguém me disse
que tinha direitos sobre ela
como se fosse possível, só por ter ossos,
alguém ser dono de um esqueleto
que não fosse o seu
como se fosse possível alguém ser dono de mim
só porque condenam de onde vim

só porque me escravizaram
não significa que sou escravo
por isso me rebelo e grito: quem é você
que se arvora dono do mundo
e pensa que me inclui
na sua podridão feudal
que desdenha o trabalho
e só promove o capital?

sob minha pele, guardo um esqueleto
igual ao seu: cabeça tronco e membros
e dentro, coração fígado estômago pulmão
e tantos intestinos quantos destinos
caminhos desalinhos com tantos redemoinhos

viemos todos do mesmo lugar
a mãe áfrica nos pariu e nos alimentou
então por que você olha para mim
como se eu fosse órfão, rufião?

então, se for assim, você também é!
e que diferença fazemos um do outro?
apenas uma questão de geografia
que  tentamos justificar numa vã filosofia

IV
me considero um ser humano. se um artista é um ser humano, então, também pode me chamar de
artista. mas eu sou apenas um ser humano. eu realmente não sei se teremos um futuro. claro que nós
sabemos que temos um passado, mas não sei se temos um futuro. porque nos odiamos, nos separamos
uns dos outros, temos ideias malucas, muitas ideias nazistas, não nos importamos com as tragédias dos
outros, não nos importamos com as injustiças sociais. por que, então, deveríamos ter um futuro? (ai weiwei, 2019, p. 49)


quando vejo os trabalhos de ai weiwei
também me vejo, vejo você
vejo todos os seres humanos
vejo passado, presente, futuro
porque weiwei, mesmo não acreditando
tece teias de forte urdidura
tece redes de fortes fios
tece carinhos, ternuras, esperanças
tece sua própria boa humanidade
e mostra que a nossa, como a dele, 
pode ser boa
e, no inverso do que proclama,
ajuda a trançar a nossa humana idade
nos propõe um lado bom
que constrói irmandade e paz

ai weiwei é um arauto do bem
um peregrino falcão
uma branca pomba eficaz
ave mohandas karamchand mahatma gandhi

V
cada um de nós está diante de seu mundo particular
dentro do mundo desse mundo do tamanho do mundo
aquele mundo de drummond, se eu me chamasse raimundo...
mas você é duro, raimundo... ou seria josé... buda... cristo... maomé...

somos todos migrantes, temos começo, meio e fim,
nem sempre escolhemos o navegar preciso de pessoa
quase sempre uma imprecisão quase sempre bem pessoal

somos todos migrantes, migrantes de nós mesmos
nascemos do mesmo jeito, morremos do mesmo jeito
mas por que  viver separados, cada um ao seu léu?

temos todos a mesma mãe áfrica de ancas e útero
temos cabeças, troncos, membros e uma pele
temos um mesmo esqueleto nu com a mesma impressão digital

sabemos que estamos indo, sabemos que estamos vindo
dia e noite, labuta infinita, trabalho, horas e horas de viagem
comida fria na marmita, à espera de um corpo quente na noite finita
estamos todos sempre indo e vindo, sem saber de onde para onde
com a maldita sina do trabalho que faz suar corpo e alma

somos todos migrantes, de hora em hora, dia a dia,
esse caminho tem contentamento, por vezes, tem euforia,
mas tem também a dolorosa calmaria
que leva a mares violentos povoados de almas arredias

somos todos migrantes, tanto quando vamos quanto quando vimos
migrantes nas idas de esperança e vontades para o futuro
nas vindas de desesperança e construção de presentes tenebrosos

somos todos migrantes, presos na mesma alforria, em busca da liberdade
de viver qualquer paixão, de amar sem guerra, de viver uma vida de harmonia

mas alguém me diz que é preciso mais que trabalho
que é preciso consumir até o  último centavo para ser feliz e contente
não importa quanto isso tenha de egoísmo irracional e doente

que espaço ocupamos nós, górdios ou não
que tempos vivemos nós, cronos ou caos
somos khôra fora e dentro da pólis,
nossos pulmões respiram lealdade?
nossos poros transpiram falsidade?
estamos sob o jugo da eterna mania do lucro e da vantagem?

onde depositamos nossa ternura?
em que conta bancária?
quanto rende esse investimento?
parece que nada, parece que se esvanece
e nos tornamos enclausurados na mesmice das telas televisivas
ou nas telas ignotas dos egoísmos celulares
que nos afastam da realidade, ou nos tornam solitários parasitas

que sementes somos plantadas num terreno árido
que esquecemos de adubar?

VI
a quem oferecemos nosso afeto, a quem damos nosso carinho?
para que humanidade contribuímos?
para infinitas e belas brancas rosas papoulas ou nucleares ogivas ?
essa procissão nos leva para um batizado
ou é apenas um tenebroso féretro/velório?

é hora de acabar o palavrório oco e vazio
é hora de misturar peles com peles
vozes com vozes, e tirar a carcaça/armadura
que esconde canduras, afagos e afetos 

nus somos mais iguais mesmo com cores desiguais
temos a mesma fome de amar, de comer, de viver
juntos podemos fazer e refazer toda hora nosso vir a ser

nós, migrantes de todo o mundo, podemos nos unir
escolher um bom barco e vislumbrar um porto seguro
e junto com um amigo amiga companheira companheiro
solidário solidária afetuoso afetuosa
sem desatino, construir um nosso belo e comum bom destino
e caminhar e navegar e voar
no tempo espaço no mapa da boa humanidade

fernando rios
(Poema gentilmente cedido pelo autor)

ai weiwei / revista e / sesc sp / janeiro de 2019 / nº 7 / ano 25 / p. 49
1A FOTO A PRETO E BRANCO: NA ILHA GREGA DE LESBOS, AI WEIWEI RECRIA A IMAGEM DO MENINO AYLAN, DE TRÊS  ANOS, QUE MORREU AFOGADO NA TURQUIA  FOTO: ROHIT CHAWLA / INDIA TODAY VIA AP
RESTANTES 3 FOTOS: BARCO DOS  MIGRANTES DE AI  WEIWEI, QUE TAMBÉM NOS CONDUZ.
EXPOSIÇÃO  NO CENTRO CULTURAL DO BANCO DO BRASIL, EM BELO HORIZONTE, DE 6 DE FEVEREIRO A 15 DE ABRIL DE 2019.  FOTOS: FERNANDO RIOS

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