ENTREVISTA EXPLOSIVA - Amós Oz: "Eleitores não votam no melhor, mas no candidato mais divertido"
Amós
Oz: "Eleitores não votam no melhor, mas no candidato mais divertido"
Nicola Abé e Britta
Sandberg
Em
Tel Aviv (Israel)
04/03/2017
Amós Oz
é escritor, ativista e pacifista israelense
A entrevista com Amós Oz ocorre em seu
modesto apartamento no 12º andar, com vista para a baía de Tel Aviv. Desde a
eleição de Donald Trump como presidente dos EUA, Oz, que aos 70 conserva muito
de sua fúria e paixão, tornou-se mais pessimista sobre o futuro. Um exemplar em
alemão da nova edição de "O sétimo dia", livro que ele editou
originalmente, está sobre a mesa de centro. Depois da Guerra dos Seis Dias, em
1967, ele entrevistou soldados israelenses sobre suas experiências na guerra. O
conflito terminou com a ocupação da faixa de Gaza, da Cisjordânia e de
Jerusalém Oriental.
Spiegel: O senhor passou
décadas defendendo uma resolução para o conflito do Oriente Médio. Agora Donald
Trump tornou-se o primeiro presidente dos EUA a dizer que não insistirá em uma
solução de dois Estados. Isso foi um choque para o senhor?
Amós Oz: Pareceu-me um senso de humor bizarro. Ele basicamente disse: um
Estado, dois Estados, façam o que quiserem. Não acho que foi uma declaração
séria sobre a política americana. Foi ele encolhendo os ombros e dizendo: quem
se importa com isso? Acho que ele não tem a menor ideia do que quer fazer no
Oriente Médio. Talvez precise de mais tempo para pensar a respeito. Talvez ele
ouça o conselho de alguém. Mas certamente não disse: "Caro senhor
Netanyahu, se quiser a Cisjordânia, tome-a, os EUA vão aceitar".
Spiegel: Mas uma solução com
dois Estados soberanos, Israel e Palestina, parece estar a grande distância. Ao
nos prepararmos para esta entrevista, imaginamos que o senhor não achou
engraçados os acontecimentos dos últimos dias.
Oz: Não, eles não foram. Nós, defensores da solução de dois Estados
--Israel e Palestina--, hoje estamos sob um feroz ataque da extrema-direita e
da extrema-esquerda em Israel e na Europa. Se eu fosse paranoico, diria que
talvez a extrema-esquerda e a extrema-direita estejam coordenando uma
conspiração. A extrema-direita está nos dizendo: esqueçam a solução de dois
Estados, vai ser um Estado judeu da costa até o Jordão. A esquerda diz que você
deve esquecer a autodeterminação judia, você tem de viver como minoria em um
Estado árabe, como os brancos na África do Sul. A palavra-chave que ambos têm
em mente é que a situação na Cisjordânia é "irrevogável". É uma das
palavras que eu mais rejeito.
Spiegel: Por quê?
Oz: Porque sou velho e já vi coisas serem revogadas. Coisas que
pareciam muito irrevogáveis. Na manhã em que acordei e me disseram que Trump
tinha sido eleito presidente dos EUA, escrevi para Angela Merkel. Eu disse que
ela --pelo menos para mim-- é hoje a líder do mundo livre. Mais de 70 anos
depois de Hitler, uma mulher chanceler alemã é a líder do mundo livre. Por isso
não me falem sobre o irrevogável.
Spiegel: Durante seus oito anos
no cargo, o governo de Barack Obama não conseguiu propor uma solução. Poderia a
abordagem do novo presidente americano criar novas oportunidades?
Oz: Eu ficaria contente se você pudesse me revelar o que este
governo planeja para o Oriente Médio. Realmente não sei. A julgar pelo que vi
na entrevista coletiva muito incomum com Trump e Netanyahu, não acho que o
governo americano tenha uma ideia clara sobre políticas. Qualquer coisa pode
estar sobre a mesa.
Spiegel: Houve uma sensação nas
últimas décadas de que o mundo estava cada vez mais melhor, que a democracia e
a modernização progrediam. Estamos hoje presenciando um movimento contrário?
Oz: Recebemos um presente maravilhoso de Stalin e Hitler que eles
jamais pretenderam nos dar. Ficamos imunes durante cerca de 60 anos à agressão,
ao racismo e ao militarismo. Eles nos imunizaram parcialmente contra essas
coisas. Hoje parece que esse presente de Stalin-Hitler atingiu o prazo de
validade. Fomos estragados por ele. Então talvez estejamos apenas emergindo de
uma era relativamente dourada. Digo relativamente porque essa "era
dourada" também incluiu o Vietnã e a África do Sul, assim como a
Iugoslávia. Mas nós vivemos uma era relativamente dourada entre o fim da
Segunda Guerra Mundial e 11 de setembro de 2001.
Spiegel: Mas em termos do
conflito no Oriente Médio quase não houve progresso durante esse período. O
senhor vê alguma alternativa à solução de dois Estados?
Oz: Temo que não. Não acredito em Estados binacionais. Há exemplos
maravilhosos disso, Estados multinacionais prósperos: Suíça, Suíça e Suíça. Em
todos os outros lugares --seja Chipre, a Iugoslávia ou a União Soviética--
terminou em um terrível banho de sangue. Os palestinos não vão a lugar nenhum,
eles não têm aonde ir. Os judeus israelenses também não vão a lugar nenhum,
pois não têm aonde ir. Mas não podemos nos tornar uma família feliz, porque não
somos. Por isso, temos de dividir a casa em apartamentos menores e aprender a
dizer "bom dia" no corredor todos os dias. Com o tempo, talvez, vamos
aparecer na casa do outro para tomar um café. Mas precisamos dessa casa
geminada, uma unidade para duas famílias.
Spiegel: Na nova edição de seu
livro sobre a Guerra dos Seis Dias, o senhor escreve no prefácio que depois de
50 anos de ocupação na Cisjordânia o senhor vê hoje mais apatia, amortecimento
e indiferença na sociedade israelense. O que o levou a essa conclusão?
Oz: Correção: não gosto que seja chamado de meu livro. Não é meu
livro. Juntamente com Avraham Shapira, sou meramente o editor desse livro, que
é feito de relatos testemunhais de soldados. Incidentalmente, eu preferia o
título antigo do livro, "Conversa de Soldados", ao novo. Mas sim,
acho que a sociedade israelense está se tornando mais indiferente. Em 1940,
Winston Churchill disse que a guerra deu à Grã-Bretanha seu melhor momento. Uma
longa guerra é degeneradora --ela arruína a mente, a alma e a psique de
indivíduos e nações. Esse conflito sangrento se desenrola há tempo demais. Está
causando coisas terríveis aos israelenses e palestinos. Uma das coisas
terríveis é a indiferença. As pessoas dizem: o que podemos fazer? Temos de
seguir até o dia seguinte e esperar que estejamos bem amanhã, como estamos hoje,
e enquanto isso desfrutar a vida.
Spiegel: O senhor escreveu que
o que está acontecendo na Cisjordânia se aproxima de crimes de guerra. A
maioria da população de Israel tem uma opinião diferente.
Oz: Universalmente, não apenas aqui, as pessoas querem se sentir bem
consigo mesmas. Todos queremos nos sentir bem até certo ponto. Em parte da
mídia israelense, mas não em toda, elas leem sobre coisas muito feias
praticadas por colonos e soldados israelenses contra os árabes palestinos. Isto
incomoda muitos israelenses. Eles dizem: deixem-nos em paz, o que podemos fazer
a esse respeito? Ou dizem: vejam a Síria, vejam o Iraque; a Cisjordânia é o
paraíso, em comparação. Eu fui um dos primeiros a dizer, pouco depois da Guerra
dos Seis Dias, que a ocupação é corruptora. Ela corrompe o ocupante e, de
maneira diferente, corrompe o ocupado.
Spiegel: O que o senhor quer
dizer com isso?
Oz: É errado pegar um menino ou uma menina de 18 anos e armá-los com
metralhadoras e torná-los o rei todo-poderoso de alguma aldeia árabe. Nenhum
jovem, e também nenhum idoso, deveria ter tanto poder sobre a vida e a morte de
tantos indivíduos impotentes. É corruptor. Às vezes isso provoca uma violência
desesperada, selvagem e indiscriminada entre os ocupados. A Guerra dos Seis
Dias depositou as bases de um profundo ódio contra Israel 50 anos atrás. Eu
disse isso em um momento muito precoce, quando as pessoas cantavam sobre
libertar a terra ancestral. Fui rápido ao dizer que, independentemente do
futuro desses territórios, não estão libertos, porque o termo
"libertação" só se aplica a seres humanos, e não à terra, não a
propriedades imobiliárias. Obviamente, nós não libertamos os palestinos em Gaza
ou na Cisjordânia. Nós os ocupamos, não os libertamos.
Spiegel: O senhor lutou no
Sinai. Como essa experiência o modificou?
Oz: Eu nunca escrevi sobre o campo de batalha em meus livros. Eu
tentei e não consegui, porque o campo de batalha é, primeiramente, feito de
fedores terríveis; não imagens, não sons, mas fedores. Eles não se transportam
bem para a literatura. Mas sim, ela me modificou, transformou-me em um teimoso
ativista pela paz.
Spiegel: O senhor ainda tem
memórias da guerra que continuam lhe causando sofrimento hoje?
Oz: Vou compartilhar uma com você. No primeiro dia da Guerra dos
Seis Dias, eu estava sentado com outros homens, reservistas recrutados
israelenses, na encosta de uma duna de areia. De repente, morteiros começaram a
explodir entre nós. Levantei os olhos e vi pessoas no morro em frente mirando e
atirando contra nós. Sabe qual foi meu primeiro instinto? Não atirar de volta.
Meu primeiro instinto foi chamar a polícia --essas pessoas estão loucas! Não
veem que há pessoas aqui? Essa foi a última reação saudável e humana que tive
no campo de batalha.
Spiegel: Investigações sobre
corrupção estão sendo conduzidas contra o primeiro-ministro Netanyahu. Na sua
opinião, qual é a gravidade da situação para ele?
Oz: Não invejo a situação de Netanyahu, porque acho que ele está na
água quente. Obviamente, esse homem tem um sentido de moral pessoal muito
diferente do de alguns de nossos líderes anteriores. O que eu pessoalmente
gostaria de ver? Que este governo fosse diretamente para o inferno. E eu
gostaria de ter visto o governo anterior ir direto para o inferno.
Spiegel: Mas grande parte da
população continua apoiando Netanyahu. O senhor acha que os israelenses são
fundamentalmente menos críticos quando se trata de corrupção?
Oz: Não acho que os israelenses sejam menos críticos à corrupção que
a população da Itália, da França ou dos EUA. Israel é especial de uma maneira
diferente. Há um Israel do dia e um Israel da noite. O primeiro é
autoconfiante, agressivo e apaixonado, como outros países mediterrâneos. É
hedonista, materialista e quase arrogante. Durante a noite, as pessoas ficam
aterrorizadas, cheias de temores existenciais. Esses medos não são infundados.
Os judeus têm um poderoso aliado, os EUA, mas realmente não têm uma família
maior do mesmo modo que existe uma família europeia ou uma família árabe-muçulmana.
As pessoas que não compreendem essa ambivalência nunca entenderão este país.
Elas não conseguirão entender como Netanyahu conseguiu ganhar a última eleição
dizendo que os iranianos estão chegando, o Estado Islâmico está chegando, os
árabes estão chegando e o mundo inteiro nos odeia, de qualquer modo.
Spiegel: O senhor acha que
Netanyahu pode sobreviver politicamente às atuais investigações?
Oz: Não sei. A resposta não está aqui. A resposta é que a democracia
em muitas partes do mundo está passando por uma crise muito profunda. A
política está se tornando um ramo da indústria de entretenimento. As pessoas
não votam no melhor líder, mas no candidato mais divertido.
Spiegel: O senhor está se
referindo às eleições nos EUA?
Oz: Sim, mas não somente. Também no seu amado continente. Espero que
eu não tenha de me referir à Alemanha.
Spiegel: Considerando todas
essas circunstâncias, qual a sua esperança de paz no Oriente Médio?
Oz: O que deverá acontecer? Ou uma escalada da violência ou uma
mudança completa em todo o teatro do Oriente Médio. Pode ser, e digo isso aos
meus amigos palestinos, que os palestinos de certa maneira perderam sua hora.
Eles tiveram seu momento quando a opinião pública mundial os apoiava, e uma
parte considerável do público israelense se dispunha a um compromisso com eles.
Mas recentemente, com o EI e o fanatismo, ficou fácil para o governo israelense
simplesmente empurrar a luta por autodeterminação dos palestinos para as mesmas
fileiras que esses movimentos fundamentalistas.
Spiegel: Isso significa que a
solução de dois Estados está morta, como muitos na direita israelense afirmam
hoje?
Oz: Não. Mas é possível que um Estado palestino seja instalado sobre
as cabeças dos palestinos. Poderia fazer parte de um acordo entre o governo
israelense e os Estados árabes moderados, mas não entre Israel e os palestinos.
Spiegel: Como o senhor
descreveria seu humor pessoal hoje? O senhor está mais ou menos pessimista que
de hábito?
Oz: Eu adoraria deixar para meus filhos e netos um mundo melhor do
que o que vou lhes deixar. Mas, tendo em mente que eu nasci no mundo de Hitler,
Mussolini e Franco, o legado que lhes deixo talvez não seja tão terrível quanto
o que meus pais e avós me deixaram.
FONTE: Aqui
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