segunda-feira, 9 de abril de 2012

MORRER DE PÉ NA PRAÇA SYNTAGMA - José Jorge Letria


O ACONTECIMENTO

No dia 04/04/2012, Dimitris  Christoulas, um
pensionista grego, de 77 anos, pôs termo à sua vida
sob uma árvore, na Praça Syntagma, nas proximidades
do parlamento grego. Segundo informaram algumas
testemunhas, Christoulas ainda teria berrado “não
quero deixar dívidas aos meus filhos” antes de desferir
um tiro contra sua própria cabeça. Vale dizer que o
Tsolakoglou, a quem se refere em sua nota suicida,
foi o primeiro ministro grego que, em 1941, permitiu
a entrada das forças nazistas na Grécia. Para Christoulas,
o atual governo grego se assemelha ao de Tsolakoglou,
já que sob forte pressão da Alemanha de Angela Merkel,
acabou aceitando os termos impostos pela troika
(credores internacionais da Grécia), para receber ajuda
financeira de bilhões de dólares vindas do FMI. Como
todos sabem, há alguns anos a Grécia vem atravessando
uma grave crise que, dentre outros efeitos, causou um
enorme desemprego atingindo uma em cada cinco
pessoas naquele país. Para tentar resolver a crise
financeira, o governo cedeu às pressões germânicas e
optou por pegar bilhões de dólares emprestados junto
ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e, em
contrapartida, adotar as medidas de austeridade impostas
pela troika: cortes de 25% dos valores das pensões e de
serviços sociais, reduções de salários, aumento de
impostos e demissões de funcionários públicos, dentre
outras. Tais medidas, evidentemente, atingem em cheio
não só os trabalhadores, que perdem seus empregos,
mas também os desempregados e aposentados de todo o
país, como era o caso de Dimitris Christoulas.

A nota que deixou, dizia o seguinte:
“O governo de Tsolakoglou acabou com a possibilidade
de eu poder sobreviver com uma pensão digna, que
paguei sozinho durante 35 anos sem nenhuma ajuda
do Estado. E, sendo que a minha idade avançada não
me permite reagir de forma dinâmica (embora se um
colega grego pegasse uma Kalashnikov, eu estaria bem
atrás dele), não vejo outra solução senão pôr, de forma
digna, fim à minha vida, para que eu não me veja
obrigado a revirar o lixo para assegurar o meu sustento (…)”.

O TEXTO de José Jorge Letria
Quando se ouviu um tiro na Praça Syntagma,
logo houve quem dissesse: “É a polícia que ataca!”.
Mas não, Dimitris Christoulas trazia consigo a arma,
a carta de despedida, a dor sem nome, a bravura,
e vinha só, sem medo, ele que já vivera os tempos
de silêncio e chumbo do terror dos coronéis.
Mas nessa altura era jovem e tinha esperança.
Agora tudo isso findara, mas não a dignidade,
que essa, por não ter preço, não se rende nem desiste.


Dimitris Christoulas podia ser apenas um pai cansado,
um avô sem alento para sorrir, um irmão mais velho,
um vizinho tão cansado de sofrer. Mas era muito mais
do que isso. Era a personagem que faltava
a esta tragédia grega que nem Sófocles ou Édipo
se lembraram de escrever, por ser muito mais próxima
da vida do que da imaginação de quem efabula.
Ouviu-se o tiro, seco e certeiro, e tudo terminou ali
para começar logo no instante seguinte sob a forma
de revolta que não encontra nas bocas
as palavras certas para conquistar a rua.
Quando assim acontece, o silêncio derruba muralhas.
Aos jovens, que podiam ser seus filhos e netos,
o mártir da Praça Syntagma pediu apenas
para não se renderem, para não se limitarem
a ser unidades estatísticas na humilhação de uma pátria.
Não lhes pediu para imitarem o seu gesto,
mas sim que evitassem a sua trágica repetição.
E eles ouviram-no e choraram por ele, e com ele,
sabendo-o já a salvo da humilhação
de deambular pelas lixeiras para não morrer de fome.


Até os deuses, na sua olímpica distância,
se perfilaram de assombro ante a coragem deste gesto.
Até os deuses sentiram desprezo, maior do que é costume,
pela ignomínia de quem se vende
para tornar ainda maior a riqueza de quem manda.
A Dimitris bastou um só disparo, limpo e breve,
para resumir a fogo toda a razão que lhe ia na alma.
Estava livre. Tornara-se herói de tragédia
enquanto a Primavera namorava a bela Atenas,
deusa tantas vezes idolatrada e venerada.
Assim se despedia um homem de bem,
com a coragem moral de quem o destino não vence.


Quando o tiro ecoou na praça de todas as revoltas,
Dimitris Christoulas deixou voar uma pomba,
uma borboleta, uma gaivota triste do Pireu
e disse, com um aceno: “Eu continuo aqui,
de pé firme, porque nada tem a força de um homem
quando chega a hora de mostrar que tem razão”.
Depois vieram nuvens, flores e lágrimas,
súplicas, gritos e preces, e o mártir da Syntagma,
tão terreno e finito como qualquer homem com fome,
ergueu-se nos ares e abraçou a multidão com ternura.

José Jorge Letria

6 de Abril de 2012
 
http://abeirario.blogspot.com.br/

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