quarta-feira, 9 de agosto de 2023

José de Sousa Miguel Lopes - Prefácio do livro "Pelas margens do tempo" de José Paulo Lobo




Em madrugadas insones, à luz de modernos xipefos sem fumaça, à janela da sua cozinha, no vislumbre da alameda calcetada, José Paulo Lobo encontrou o portal de outras realidades, de outros tempos e viajou além das sombras noturnas. Sonhou acordado com Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar e Luís Carlos Patraquim. Com Camões, Pessoa e José Régio. E ainda com Carroll, Huxley e Orwell. De permeio dos seus afazeres nas artes culinárias, cantou com Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Charles Aznavour e Elvis Costello. Entusiasmado com o convívio com os mestres, poetas, escritores e cantautores e assombrado por xipocos da sua terra, ousou, sexagenário, virgem de poesia, aventurar-se impudicamente por territórios nunca anteriormente explorados. Desoprimindo a alma. Desconfinando a mente. (Do site da Editora)







José Lobo nasceu em 1957, em Maputo - Moçambique. Aí frequentou o liceu e concluiu o Bacharelato em Economia na Faculdade de Economia da UEM. Uma década mais tarde foi estudar para Portugal, concluindo a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas e a Pós-Graduação/MBA no ISEG. Em Maputo, entre 1976 e 1977, foi professor de Matemática no ensino secundário e professor assistente da disciplina de Análise de Investimentos, na Faculdade de Economia da UEM. Casou em 1979 com uma professora moçambicana, casamento que se mantém há 43 anos. Desempenhou diversas funções ao longo da sua vida profissional, sendo atualmente consultor independente e formador certificado em gestão. Em 2021 publicou uma coletânea de histórias e reflexões Asas para Voar, Raízes para onde Voltar. Pelas Margens do Tempo é a sua primeira aventura pela poesia e prosa poética, sob a chancela da Oficina da Escrita. (Do site da Editora)


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Prefácio


A tendência sempre crescente ao longo da segunda metade do século 20 de pessoas que migraram mais ou menos espontaneamente de um lugar para outro, de um hemisfério para outro, em busca de condições mais dignas de vida e de trabalho, representa um evidente marco da nossa contemporaneidade. Este fluxo migratório transnacional pode-se dizer, o mais recente dos muitos registrados na história, determinou o perfil de espaços multiculturais, cuja ordem social se viu fortemente afetada pela nova configuração geopolítica dividida em termos de classes econômicas e de gênero, e altamente excludente. Mas, também, uma (nova) ordem geopolítica que precisa lidar com noções sobrepostas de tempo, espaço, cultura e conhecimento, formando um mosaico em que os conceitos e as pessoas se relacionam e forçam uma negociação constante, pelo mero fato de entrarem em contato (virtual ou presencial) e de apresentarem distintas perspectivas e visões de mundo, instadas também pela velocidade e maior facilidade de acesso aos meios de comunicação instantâneos.


Em decorrência disso, os que se voltam para a análise crítica desses fenômenos, tanto no espaço social como no simbólico, devem prestar atenção para a mudança epistemológica que está envolvida nesse processo. Sempre que há encontros entre culturas, surge também um embate epistemológico que se desdobra na negociação de valores, símbolos e códigos culturais. A condição daqueles que migram de um contexto geográfico, cultural e social para outro têm de enfrentar um duplo signo de perda e sofrimento e de potencialização que aloja a capacidade de transformação enquanto oportunidade de escolher novas posições de sujeito. Isso já aconteceu com a diáspora africana nas Américas, que acarretou a configuração, por parte dos sujeitos diaspóricos afro-(latino) americanos, de localizações identitárias dinâmicas e não marcadas pelo binarismo caro ao modelo eurocêntrico cartesiano e iluminista. Contudo, para o sujeito diaspórico, a negociação de novos espaços culturais, crucial para a construção identitária ou seu sentido de pertencimento, é influenciada – e em alguns casos determinada – por questões de raça, gênero e etnia.


E esta ambivalência é característica da escrita africana pós-colonial na qual a desterritorialização da migração constitui um lugar de reconexão – lugar este, não somente em termos geográficos, históricos e intersubjetivos, mas também em termos de posição de classe, raça, sexualidade e gênero.


O movimento de escavação na memória histórica e pessoal configura-se como um procedimento que desloca e faz migrar o ponto de vista sobre determinado acontecimento e enfatiza o que está dito nas entrelinhas, tanto da história quanto do texto literário.


É com base nos pressupostos que atrás descrevemos que podemos analisar o trabalho poético de Pinto Lobo. Vivendo em Portugal, ele escreve seus poemas a partir de determinado lugar (seu próprio país, Moçambique) e tendo também em mente um determinado “evento” transnacional e intercultural (a diáspora africana que ocasionou a emergência de uma série de encontros e desdobramentos culturais), identificando o Atlântico como o lugar geográfico e simbólico pelo qual transitaram essas culturas. Em particular, na sua, o resgate da memória dos eventos que são “África” participa na construção dos discursos de afirmação e de auto representação dos africanos, e parece responder a uma vontade explícita de ressignificá-los à luz de um questionamento que possa trazer um olhar positivo, valorizador e concreto a partir da sua própria trajetória de vida.


A identidade que o autor a todo o momento sugere, comporta a noção da ambivalência, intrínseca ao processo diaspórico que fundamentou e fundamenta ainda a sociedade moçambicana e a sociedade portuguesa onde o poeta reside. Isso é visível no poema “Vampiros e Liberdade” onde ele revisita uma célebre canção do cantor português Zeca Afonso: Outra noite de insónia ou sono insonso. Ouço Zeca Afonso cantando os Vampiros. (p. 23). Ou mais adiante quando ao referir-se ao cantor português Sérgio Godinho diz: Intervém entretanto Sérgio Godinho em jeito de epifania, cantando Liberdade.(p.25). Assim, o que Pinto Lobo revela, fruto da consciência da própria origem diaspórica aliado a um distanciamento crítico para com o processo de construção da sociedade na qual nasceu, articula noções de fixidez e origem paralelamente a noções de movimento, migração e consequente redefinição da própria identidade.


A voz deste poeta contemporâneo participa na construção coletiva de um imaginário, ciente de que a sociedade moçambicana mantém, mesmo que dissimulados, elementos do legado e pensamento colonial. Ao propor essa reflexão, o autor indica possíveis rumos dessa sociedade acerca da redefinição de uma identidade deslocada, múltipla, hifenizada, sendo que essa sociedade se vê sempre mais pressionada interna e externamente por forças e agentes de natureza global.


Nesse sentido, em se tratando de um poeta pensador e questionador da contemporaneidade, nos apoiamos nas reflexões de Edward Said, para quem “é tarefa do intelectual tentar desfazer e questionar os estereótipos e as categorias cristalizadoras que contribuem para enjaular o pensamento humano e difundir ideologias castradoras, ao apontar as contradições sobre as quais se fundamenta determinada sociedade e, dessa forma, estimular a reflexão crítica” (SAID. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993, p. 10.). No entanto, esse modelo de intelectual atua no cotidiano, na medida em que a mensagem que articula está vinculada a uma atitude que se desdobra na sociedade, e se sustenta em “um estado de alerta constante”.


O relacionar-se constantemente com um passado ambíguo, silenciador das vozes despidas de poder e de autoridade e desfigurador dos sujeitos anônimos que o animaram, o autor empreende uma visita a um passado muitas vezes filtrado no presente através das fontes excludentes da historiografia oficial. Nesse sentido, a atividade de escrita e reflexão de Pinto Lobo revelam a noção de raiz e caminho, ou seja, de algo fixo e algo em andamento, desnudando a ambiguidade inerente ao processo diaspórico.


Em muitas abordagens da sua poética o tema da inserção simbólica, social e física do africano na sociedade pós-colonial à qual ele pertenceu é elemento central, o que o leva a empreender uma revisão dos clichês e estereótipos atribuídos ao africano pela máquina colonial. O fato de ele ser autor oriundo da diáspora africana e de transitar num “entre-lugar” simbólico faz dele um garimpeiro de pequenas versões da história com “h” minúsculo, sintetizadas em inventários poéticos, o que lhe permite desenvolver modos plurais para escrever a propósito do conceito de casa, identidade, amor, política, comunidade e exílio.


A poesia de Pinto Lobo tem como eixo central a revalorização do que existe de mais natural, a abertura em relação ao outro, em prol de uma poética (não somente letrada) que possa fazer de cada signo, de cada gesto, de cada sujeito, o “moto-contínuo do mundo”.


É uma poesia social, engajada, na qual problematiza o sentido e a prática de sua visão de mundo. O poeta universaliza seu canto, preocupado com a definição de uma cidadania reinventada, como forma de pertencer e atuar hoje no mundo como africano migrante.


Nesse sentido, podemos concluir que a poesia de Pinto Lobo está mais integrada com o cosmos, interage e se vê afetada por provocações de natureza global, interagindo com o ambiente que o rodeia, não só em termos culturais e simbólicos, mas também no que diz respeito à sua geografia. Por outro lado, a inscrição corporal da vivência e do sentimento da diáspora se exemplifica nitidamente nas referências a grandes ícones da poesia moçambicana como é o caso de José Craveirinha e Noémia de Sousa, pois, já desde o título do livro ”Pelas margens do tempo”, somos apresentados a um mundo onde os registros corporais são signos de um discurso mais profundo, que não só reenvia à biografia, mas testemunha o discurso da história da nação moçambicana em processo de desenvolvimento permanentemente adiado.


O autor mantém uma conexão simbólica e afetiva muito forte com sua terra natal, e dessa relação emerge o vocabulário local que entra em cena para nos dizer das raízes do poeta: As ruas são palco de outras lutas tremendas Entre chapas, my love e carros privados Tchopelas, txovas, pedintes e bufarinheiros. (p. 88). Ou Desconsigo adormecer afirma o autor na p. 25 apropriando-se das novas formulações linguísticas moçambicanas.


Na sua poesia, o processo mnemônico do eu poético traz flashes da vida cotidiana que indicam o contexto histórico-geográfico relacionado à diáspora. É o caso, por exemplo, da menção ao tambor, signo tão marcante da epistemologia da diáspora africana. Tal menção mostra que esse “eu enunciador” se serve do tambor para passar mensagens, como um instrumento de comunicação e não (apenas) como um mero objeto que produz som e música. Ouçamos o tambor do poeta: Vagueio por entre os silêncios atrapalhados e bafientos e tento escutar os tambores silenciados do mapico em Cabo Delgado.(p.20).


O sujeito lírico encontra-se no “entre-lugar”, no exílio, e se agarra às palavras para elaborar o trauma da “dor mutiladora da separação” da terra natal. Uma dor que não decorre do fato de estar “fora” da própria terra, e sim do fato de talvez não saber mais voltar, por não se reconhecer mais no lugar de origem.


Na seara política nosso poeta mostra sua indignação com o estado de degradação a que chegou a sociedade moçambicana onde se instalou a “Putrefacção moral, apodrecimento de princípios éticos, total desrespeito pela vida humana e pelas instituições. Estaremos a caminhar para a institucionalização do crime na nossa sociedade?” (p.99).


Em decorrência, as fortes contradições classistas presentes na ordem política moçambicana estão presentes no seu poema “Requiem Por Palma” (p.15) quando discorre indignado, com o silêncio dos poderosos e com a ostentação de sua riqueza: Jovens e crianças em Palma degoladas / adultos descabeçados em morte violenta / Ante sirenes maputenses imperturbadas / escoltando o roncar dos Mercedes C-180 (...) Refugiados esfomeados de Palma / de todos os cantos clamam por uma gamela / Perante apelos a atrapalhada calma / alguém em faustoso banquete se refastela. Em outro momento, o poeta interroga-se sobre as motivações da guerra dando seguimento à sua indignação: E se a guerra tiver sido mesmo escolhida pelo descaso dado aos inúmeros sinais de insatisfação e de revolta com a injusta distribuição e pérfida ostentação de riqueza? (p.20).


Difícil viajar por livros de poesia sem encontrar uma palavra que, em maior ou menor grau, parece ser irremovível do ofício poético. Trata-se da palavra amor. E nosso autor faz questão de navegar pelo território amoroso de forma impactante. O poema “Eu tenho um anjo” é, simplesmente, um hino ao amor. Pinto Lobo detém-se a descrever o amor pela mulher que ao longo de tantas décadas o acompanha na sua caminhada. Ouçamo-lo: Eu tenho um anjo meu, só meu./ Não é um anjo da guarda, mas é como se fosse. /É um anjo diferente, diferente de tão transparente.(...) Tem magnificas asas resplandecentes, /Que me aconchegam o corpo e a alma. /E ela é minha, só minha, o meu anjo! (p.51/52).


Também o humor está presente neste livro. De forma refinada o autor faz-nos sorrir ao apresentar seu poema “Devaneios culinários”. Leiam esta pérola: Apurando o molho devaneio. /Cozinho poemas. /Provo e rectifico os temperos. /Poderemos aperfeiçoar o tempero da vida? /Ou estaremos condenados a ficar enlatados como as sardinhas? (p.62).


No poema “Infância e liberdade”, há maneira do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, nosso poeta recria a reflexão do sociólogo articulando e trazendo o apoio da fotografia para colmatar os vazios de nossa memória. Com inegável perspicácia o poeta afirma: Megapixéis e a fotografia continua a ser só uma aproximação do objecto real. /Tal como as lacunas das nossas memórias, preenchidas com a imaginação. /Tornando-as plausíveis./ Verosímeis./ Seja o passado sonhado ou imaginado, aterrei em plena liberdade. (p.63).


O poema “Imaginem” (p. 83-85) é dedicado a todos os que padeceram ou padecem ainda de depressão. É um dos mais belos poemas que li até hoje sobre esta temática e o mais impactante deste livro. Em cerca de três páginas o autor nos remete para os grandes e tormentosos desafios que têm de enfrentar os que estão acometidos de depressão, bem como aqueles que os cercam. E o poema termina: “Que amor e compaixão são delicado remédio. O ente martirizado como cristal deve ser cuidado. Porque a mente ainda brilha por entre as pesadas e carregadas nuvens da escuridão”. Um belo apelo à solidariedade, ao cuidado com outro, aquele que se encontra fragilizado e para o qual precisamos estar permanentemente atentos e disponíveis para a escuta, para a compreensão e para o apoio incondicional.


O autor faz-nos viajar no tempo para o ano de 1974, na agonia do colonialismo em Moçambique e momento em que os sonhos e a esperança alcançam elevados patamares com “O fim da inocência”. Repare-se como o autor resgata a memória dos dilemas que teve de enfrentar na passagem da fronteira da juventude para a idade adulta: Trágicos e tenebrosos dias fendendo o sonho de prometidas alegrias. Dias de mudança. De céu azul e também de nuvens carregadas prenunciando outras tempestades. Assim, com a inocência abruptamente perdida fiz-me então incompleto adulto. (p.75/76). E mais adiante no poema “Eu culpado, me confesso” (p. 93) Pinto Lobo retoma os sonhos da revolução que mudariam para sempre a tão castigada terra moçambicana. Entristecido, constata como esses sonhos não estiveram à altura dos seus sonhadores, atingindo o leitor com um inesperado e contundente soco no estômago. Mas, ao mesmo tempo e, contraditoriamente, o sonho persiste. Se o poema se inicia com “Eu culpado, me confesso”, ele termina com “Eu sonhador, me confesso”. O sonho é mais forte que a culpa. O poeta deixa aberta a porta da esperança e da liberdade, traço de uma sociedade na qual muito ainda precisa ser feito para atingir um maior grau de igualdade social.


Á Guisa de Epílogo” (p.115) é o título com que o livro se encerra. E ele se encerra com chave-de-ouro, pois nosso poeta recorre a um texto de sua amada Fernanda. Trata-se de uma prosa poética contundente e politicamente explosiva contra criminosos que, acobertados pelo aparelho de Estado, não hesitam em semear a barbárie em solo moçambicano, assassinando friamente Carlos Cardoso, um dos mais destacados jornalistas de Moçambique.


Com este livro, Pinto Lobo nos conduz ao limiar de uma aventura no campo do labor poético, onde combina, em diálogo harmonioso, a fantasia e a imaginação, a palavra e o silêncio. Indispensável tomar conhecimento dessa aventura presente em Pelas margens do tempo”. Aceitemos, pois, o convite do poeta e pelas margens do tempo, voemos com ele em direção ao infinito, ao lugar no qual as raízes nos revelem como esculpimos nossos sonhos...


 

José de Sousa Miguel Lopes


(Doutor em História e Filosofia da Educação e professor na Universidade do Estado de Minas Gerais)


1 comentários:

Ricardo Martins 10 de agosto de 2023 às 08:59  

Acima da média de alguém que conhece bem os caminhos de autor!
Obrigado por explicitares e publicares a homenagem do prefácio ao Pinto Lobo (zé paulo para nós amigos/colegas e...)

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