sábado, 5 de março de 2022

"Lamento para a língua portuguesa" - Vasco Graça Moura

 




Lamento para a língua portuguesa

 

 

 

 



não és mais do que as outras, mas és nossa,


e crescemos em ti. nem se imagina


que alguma vez uma outra língua possa


pôr-te incolor, ou inodora, insossa,


ser remédio brutal, mera aspirina,


ou tirar-nos de vez de alguma fossa,


ou dar-nos vida nova e repentina.


mas é o teu país que te destroça,


o teu próprio país quer-te esquecer


e a sua condição te contamina


e no seu dia-a-dia te assassina.


mostras por ti o que lhe vais fazer:


vai-se por cá mingando e desistindo,


e desde ti nos deitas a perder


e fazes com que fuja o teu poder


enquanto o mundo vai de nós fugindo:


ruiu a casa que és do nosso ser


e este anda por isso desavindo


connosco, no sentir e no entender,


mas sem que a desavença nos importe


nós já falamos nem sequer fingindo


que só ruínas vamos repetindo.


talvez seja o processo ou o desnorte


que mostra como é realidade


a relação da língua com a morte,


o nó que faz com ela e que entrecorte


a corrente da vida na cidade.


mais valia que fossem de outra sorte


em cada um a força da vontade


e tão filosofais melancolias


nessa escusada busca da verdade,


e que a ti nos prendesse melhor grade.


bem que ao longo do tempo ensurdecias,


nublando-se entre nós os teus cristais,


e entre gentes remotas descobrias


o que não eram notas tropicais


mas coisas tuas que não tinhas mais,


perdidas no enredar das nossas vias


por desvairados, lúgubres sinais,


mísera sorte, estranha condição,


mas cá e lá do que eras tu te esvais,


por ser combate de armas desiguais.


matam-te a casa, a escola, a profissão,


a técnica, a ciência, a propaganda,


o discurso político, a paixão


de estranhas novidades, a ciranda


de violência alvar que não abranda


entre rádios, jornais, televisão.


e toda a gente o diz, mesmo essa que anda


por tal degradação tão mais feliz


que o repete por luxo e não comanda,


com o bafo de hienas dos covis,


mais que uma vela vã nos ventos panda


cheia do podre cheiro a que tresanda.


foste memória, música e matriz


de um áspero combate: apreender


e dominar o mundo e as mais subtis


equações em que é igual a xis


qualquer das dimensões do conhecer,


dizer de amor e morte, e a quem quis


e soube utilizar-te, do viver,


do mais simples viver quotidiano,


de ilusões e silêncios, desengano,


sombras e luz, risadas e prazer


e dor e sofrimento, e de ano a ano,


passarem aves, ceifas, estações,


o trabalho, o sossego, o tempo insano


do sobressalto a vir a todo o pano,


e bonanças também e tais razões


que no mundo costumam suceder


e deslumbram na só variedade


de seu modo, lugar e qualidade,


e coisas certas, inexatidões,


venturas, infortúnios, cativeiros,


e paisagens e luas e monções,


e os caminhos da terra a percorrer,


e arados, atrelagens e veleiros,


pedacinhos de conchas, verde jade,


doces luminescências e luzeiros,


que podias dizer e desdizer


no teu corpo de tempo e liberdade.


agora que és refugo e cicatriz


esperança nenhuma hás-de manter:


o teu próprio domínio foi proscrito,


laje de lousa gasta em que algum giz


se esborratou informe em borrões vis.


de assim acontecer, ficou-te o mito


de haver milhões que te uivam triunfantes


na raiva e na oração, no amor, no grito


de desespero, mas foi noutro atrito


que tu partiste até as próprias jantes


nos estradões da história: estava escrito


que iam desconjuntar-te os teus falantes


na terra em que nasceste, eu acredito


que te fizeram avaria grossa.


não rodarás nas rotas como dantes,


quer murmures, escrevas, fales, cantes,


mas apesar de tudo ainda és nossa,


e crescemos em ti. nem imaginas


que alguma vez uma outra língua possa


pôr-te incolor, ou inodora, insossa,


ser remédio brutal, vãs aspirinas,


ou tirar-nos de vez de alguma fossa,


ou dar-nos vidas novas repentinas.


enredada em vilezas, ódios, troça,


no teu próprio país te contaminas


e é dele essa miséria que te roça.


mas com o que te resta me iluminas.




 

 

 

 

 

Vasco Graça Moura



 

 

 

 

 

 Divulgando o mais recente livro do autor do blog Aqui     


0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP