sábado, 21 de agosto de 2021

"Meu amigo Dostoievsky" - Adão Cruz

 




Meu amigo Dostoievsky

 



 

 

Meu amigo Dostoievsky


nada temos a ver


aparentemente


um com o outro


a não ser o nosso encontro


pelos meus dezoito anos.


Apetece-me chorar ao recordar as noites


em que à luz de um foco olho de boi


debaixo dos lençóis


- para que minha mãe não visse -


eu invadia os teus livros


numa das maiores


e mais deliciosas aventuras da minha vida.


Ainda hoje me são familiares


o rosto de Sónia e a figura de Raskolnikov


luz mítica e mística dos que têm coisas em comum


orientando-se na direção do símbolo


e do mundo sem forma.


Da mesma forma que te marcaram Balzac


Schiller


Victor Hugo e Goethe


tu imprimiste em mim a sensação


que te fez desmaiar


perante a beleza de Seniavina


na casa dos Wielgorsky


e eu não sou homossexual


meu caro Dostoievsky.


Perante a beleza


eu não sei ao certo onde pára o sexo


se no esperma de Úrano derramado no mar


se na poesia da Morte em Veneza.


Não é a realidade física que interessa ao simbólico


mas o significado do sexo na imaginação.


A dualidade do ser funde-se


na tensão interna de quem ama


e a união sexual não é mais


do que o apaziguamento da tensão interior.


Nunca te concebi humano


sobretudo depois dessa manhã


de rosto de pedra e gelo


em que viveste o mais trágico minuto da tua vida.


Um vento glacial varreu-me a fronte


ao ouvir o teu nome na chamada para a morte:


-Akcharumov!


-Shaposhnikov!


-Dostoievsky!


Hoje


depois de ter amado tanto


aceito a tua epilepsia


como o estigma mais marcante


da pureza da condição humana


e passei a considerar-te meu irmão


para o resto da vida.


Por isso me senti prisioneiro


quando entrei na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo


por isso chorei na Praça Semenovsky


onde viveste uma vida inteira


em dois minutos de morte.


Era como se fosse eu o condenado!


Também chorei quando reencontraste Suslova


apenas


pelo que sofreste ao ver que o amor não se repete.


A noite e o vazio


estão na origem cosmológica do mundo


e o amor é uma criança que cresce...


e deixa de ser criança.


Amor e morte


quando descobertos


acordam e fogem.


Para escrever bem é preciso sofrer


disseste um dia ao jovem Merejkovsky


quando a vida confundia as chamas do teu inferno


com relâmpagos de visionário.


Sofrer pode ser apenas sorrir...


frente a toda a utopia palpável


não paranoica nem delirante.


Foi a mim que o disseste


meu caro amigo


foi a mim que o disseste


na tarde cinzenta da tua morte


na hora da hemorragia que te vitimou.


Até hoje ainda não te agradeci.


Perdoa não ter acompanhado o teu féretro


mas nessa altura eu não existia...


ou será que te acompanho ainda hoje


neste pesado caminho do fim?



 

 

Adão Cruz




Divulgando o último livro do autor do blog Aqui 

 

 

 


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