quinta-feira, 1 de julho de 2021

"Poemacto I" - Herberto Helder


 



Poemacto I

 

 



 

 

Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.


Uma vara canta branco.


Uma cidade canta luzes.


Penso agora que é profundo encontrar as mãos.

Encontrar instrumentos dentro da angústia:


clavicórdios e liras ou alaúdes


intencionados.


Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro.


Cantar sangrento nevoeiro.


O amor atravessado por um dardo


que estremece o homem até às bases.




Cantar o nosso próprio dardo atirado


ao bicho que atravessa o mundo.


Ao nome que sangra.


Que vai sangrando e deixando um rastro


pela culminante noite fora.


Isso é o nome do amor que é o nome


do canto. Canto na solidão.


O amor obsessivo.


A obsessiva solidão cantante.


Deito-me, e é enorme. É enorme levantar-se,


cegar, cantar.


Ter as mãos como o nevoeiro a arder.




As casas são fabulosas, quando digo:


casas. São fabulosas


as mulheres, se comovido digo:


as mulheres.


As cortinas ao cimo nas janelas


faíscam como relâmpagos. Eu vivo


cantando as mulheres incendiárias


e a imensa solidão


verídica como um copo.


Porque um copo canta na minha boca.


Canta a bebida em mim.


Veridicamente, eu canto no mundo.




Que falem depressa. Estendam-se


no meu pensamento.


Mergulhem a voz na minha


treva como uma garganta.


Porque eu tanto desejaria acordar


dentro da vossa voz na minha boca.


Agora sei que as estrelas são habitadas.


Vossa existência dura e quente


é a massa de uma estrela.


Porque essa estrela canta no sítio


onde vai ser a minha vida.




Queimais as vossas noites em honra


do meu amor. O amor é forte.


Que coisa forte que é a loucura.


Porque a loucura canta minada de portas.


Nós saímos pelas portas, nós


entramos para o interior da loucura.


As cadeiras cantam os que estão sentados.


Cantam os espelhos a mocidade


adjetiva dos que se olham.


Estou inquieto e cego. Canto.


A morte canta-me ao fundo.


É um canto absoluto.




Imagino o meu corpo, uma colina.


Meu corpo escada de estrela.


Nata. Flecha. Objeto cantante.


Corpo com sua morte que canta.


Imagino uma colina com vozes.


Uma escada com canto de estrela.


Imagino essa espessa nata cantante.


Uma que canta flecha.


Imagino a minha voz total da morte.


Porque tudo canta e cantar é enorme.




Imagino a delicadeza. A subtileza.


O toque quase aéreo, quase


aereamente brutal.


Ser tocado pelas vozes como ser ferido


pelos dedos, pelos rudes cravos


da planície.


Ser acordado, acordado.


Porque cantar é um subterrâneo.


Depois é um pátio.


Imagino que as vozes são escadas.


Vozes para atingir o canto.


O canto é o meu corpo purificado.




Porque o meu corpo tem uma sua morte


tocada incendiariamente.


A morte - diz o canto - é o amor enorme.


É enorme estar cego.


Canta o meu grande corpo cego.


Reluzir ao alto pelo silêncio dentro.


O silêncio canta alojado na morte.


Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.

 



 

 

 

Herberto Helder



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