quarta-feira, 14 de outubro de 2020

"Percurso da ausência - V" - Gilberto Nable




Percurso da ausência - V


    Para José Roberto Ayres


Chove lá fora sobre as serranias de Aiuruoca.


Chove lá fora sobre o gado em aboio.


Chove lá fora sobre os bambuais e o rio.


Chove lá fora sobre antigos caminhos da minha infância,


com arapucas armadas e rolinhas,


e folhas úmidas nos pés descalços,


e lírios já orvalhados.


Chove sobre os pirilampos no escuro


em verde fosforescência.


Chove sobre o corpo de minha mãe doente,


exposto ao tempo e à febre.


Chove dentro do meu peito.




Chove uma chuva miúda e triste.


Chove, afinal, sobre os telhados do mundo.


Chove nos escombros do World Trade Center,


no Marco Zero da Grande América divinizada.


Chove sobre as mulheres iraquianas orando e balindo.


Chove sobre os campos de refugiados no Afeganistão,


em suas barracas esfarrapadas ventando;


assim como antes chovera nos campos de Sabra e Shatila,


e no Gueto de Varsóvia.




Chove na piazza de São Pedro, deserta,


e sobre os ombros encarquilhados do Papa.


Ouço a chuva caindo sobre minaretes e sinagogas


com seu ruído monótono.




Vejo a chuva molhando o corpo dilacerado de um


menino palestino,


com as mãos agarradas a uma pedra.


Chove nos capacetes metálicos dos soldados de Israel,


nas suas viseiras de aço e miras telescópicas.




Chove ainda hoje sobre mim,


bêbado, sozinho e urinando na chuva,


com um miserável soluço na garganta.


Eu sei que chove hoje e choverá para sempre,


em lento e definitivo dilúvio,


sem intervalo, nem instante,


até que tudo esteja submerso sob as águas,


e na superfície nada,


nada respire sobre as ondas.



 

Gilberto Nable


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