"Entre dois dias": Miguel Serras Pereira
Entre dois dias
À tua volta agora é tudo azul
tudo é azul dentro de mim
e dentro de mim é tudo à tua volta
Aqui
entras na sala e acendes o cachimbo
ou sobes as escadas para o sótão
onde ficas silencioso
a contemplar o céu e os muros
da janela entreaberta do telhado
Ali
ao mesmo tempo estás comigo
na encosta da colina sobre o rio
e ambos olhamos os barcos e as aves
uma brisa talvez mais antiga do que a terra
nos rebentos dos salgueiros da outra margem
As
águas passam por ti
e tu ficas junto às águas que perpassam
Vens sentar-te muito perto dos meus ombros
de regresso ao tempo dos gigantes
E então acendem-se à distância
invisíveis armários suspensos das paredes
onde cheiro o verão nos bosques e a erva
os cachos de uvas comidos à lareira
ou pendurados das traves do teto a descoberto
para os primeiros dias de neve do inverno
Por
um momento encontro ainda o teu olhar
e atravesso a sua claridade desdobrando-o
nos campos onde o feno
cresce à altura dos cavalos
por entre os quais avança já uma criança
para abrir de par em par as portas do castelo
Tu
estás no limiar da torre
olhando as estradas
que pelo tempo fora nascem de partida
Depois afastas-te mostrando-me a passagem
e vamos cada um pelo seu lado até amanhã
por onde o caminho de novo não tem fim
Miguel Serras Pereira
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