sábado, 29 de julho de 2017

Christian Coelho: A necessidade de dizer Não

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A necessidade de dizer Não

Quando a realidade se torna insustentável, a poesia nos lembra da necessidade de dizer Não.  
Na primeira metade do século XX, retratando a Guerra Civil Espanhola, Manuel Bandeira escreveu o poema "No vosso e em meu coração", bradando poeticamente contra o fascismo, com a negação da Espanha de Franco e a afirmação de uma Espanha da criação e da liberdade: "Espanha no coração:/ No coração de Neruda,/ No vosso e em meu coração./ Espanha da liberdade,/ Não a Espanha da opressão./ Espanha republicana:/ A Espanha de Franco, não!"
O poeta retoma grandes nomes da história da arte espanhola como João da Cruz, Teresa de Ávila, Lope, Góngora, Góia, Cervantes, Picasso, Casals e "Lorca, irmão/ Assassinado em Granada!", contrapondo-os ao autoritarismo do franquismo e de outros períodos da nação, afirmando a "Espanha republicana,/ Noiva da Revolução!". É a poesia contra a traição, a Inquisição, o fascismo, a morte. A Espanha de Neruda e Lorca, sim; "A Espanha de Franco, não!".
 Em 1978, ainda sob o fascismo da ditadura brasileira, Belchior lançou o álbum "Todos os sentidos". A primeira música é a clássica "Divina comédia humana", céu e inferno dos amores, futebol, filosofia, Dante, Freud, Olavo Bilac... O genial poeta da canção, Dante dos trópicos, encerra lembrando que "Enquanto houver espaço, corpo e/ Tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto". Em tempos sombrios, caro Brecht, canto, poesia. Palavras são navalhas, amar e mudar as coisas interessa mais e o novo sempre vem... Volta Belchior!
Em julho de 1988, ainda sob o fascismo da ditadura do general Pinochet, centenas de intelectuais e artistas participaram do "Chile cria", encontro internacional de arte, ciência e cultura pela democracia no país. O discurso de abertura foi pronunciado por Eduardo Galeano, intitulado "Nós dizemos não". O mestre da prosa poética inicia dizendo que "Viemos de diversos países, e estamos aqui, reunidos à sombra generosa de Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo do Chile, que diz não. Nós também dizemos não."
"Dizemos não ao elogio do dinheiro e da morte", ele diz, na sequência. Denuncia o sistema assassino que transforma tudo em mercadoria, multiplicando a pobreza, a concentração da riqueza e também a solidão: "nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de abraços". A cultura dominante, cultura da mentira, do desvínculo e do desprezo, "especula com o amor humano para arrancar-lhe mais-valia".      
Por isso, é necessário dizer não ao medo, "Não ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser". Dizer não à "Neutralidade da palavra humana", indagando: "Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria justa a justiça, se não fosse bela? Nós dizemos não ao divórcio entre a beleza e a justiça, porque dizemos sim ao seu abraço poderoso e fecundo."
Dizendo não, estaremos dizendo sim: "Dizendo não às ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a palavra, e que será bela e perigosa como um poema de Neruda ou uma canção de Violeta Parra."
É necessário dizer não à cobiça, à indignidade, à liberdade do dinheiro; sim "a outra América possível", rebelde, justa, livre, solidária. Não "ao triste encanto do desencanto", sim à "esperança faminta e louca e amante e amada, como o Chile", como o Brasil, como a América Latina.
(Sobre o não chileno, vale a pena o filme "No", de Pablo Larraín, com Gael García Bernal, baseado na peça "El Plebiscito", de António Skármeta).
No Brasil atual, é necessário dizer Não. Como esses e muitos outros artistas, nós dizemos não. 
Não ao golpe político-econômico-jurídico-midiático. Não à ofensiva conservadora, à retirada de direitos, aos retrocessos. Não à espoliação, ao estado de exceção, à permanência da escravidão. Não à morte em larga escala, não ao pessimismo e à impotência, não ao desencanto do mundo.
A poesia, a canção, são "os anticorpos da nação", como disse o Tom Zé. Uma defesa contra o fascismo, uma "tradição penicilínica". "Um grão de poesia basta para perfumar todo um século", nos lembra José Martí.
Em tempos temerosos, "Havemos de amanhecer", caro Drummond. "Faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar", das margens do Rio Amazonas do nosso Thiago de Mello para o resto do país.
Dizendo não, estamos dizendo sim.
Sim, na afirmação das potencialidades do Brasil. Da poesia, da canção, dos ritmos, do futebol poesia de Pasolini. Da síntese antropofágica. Da memória ancestral, criação e resistência. Das artes, dos corpos, dos gestos e afetos. Das ações, de saberes outros. Das sociabilidades nascidas do precário e das possibilidades de beleza e justiça.
Manhã utópica grávida de encontro, lembrança da vida.

Christian Coelho, inverno de 2017 

OBSERVAÇÃO - Um agradecimento especial ao Christian Coelho que tão gentilmente me cedeu seu texto para postá-lo no blog.

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