domingo, 4 de setembro de 2011

FICA VIVO!: UM PROGRAMA SOCIAL DE SEGURANÇA PÚBLICA





Ângela Maria Dias N. Souza[1]
"Lutar pela igualdade  sempre que as diferenças 
nos discriminem. Lutar pelas diferenças sempre
que a igualdade nos descaracterize" .
Boaventura Santos

Políticas sociais são ações contínuas no tempo, financiadas com recursos públicos, voltados para atender às necessidades básicas coletivas e se originam nas diferentes formas de articulações entre o Estado e a sociedade.
Maria das Graças Rua (1988) compreende as políticas públicas como o conjunto das decisões e ações relativas à alocação imperativa de valores. A implementação de uma política pública requer além de uma tomada de decisão, que é a escolha de alternativas de acordo com as hierarquias das preferências dos atores envolvidos, diversas ações estrategicamente selecionadas.
            Políticas públicas de proteção social são cada vez mais imprescindíveis às ações governamentais em seus diferentes níveis para que o Estado não perca de vista suas responsabilidades e obrigações.
A Constituição Brasileira de 1988 prevê a segurança como um direito social:

Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Constituição Federal 1988).

Considerando o conceito de política social e tendo em vista que a segurança é um direito social, podemos dizer que o Fica Vivo é um Programa Social da Política de Segurança Pública que visa à proteção da vida dos jovens envolvidos com a criminalidade? continua...



A formulação da metodologia do Programa Fica Vivo se deu de forma dialogada, entre profissionais e instituições bem diversificados. Sua concepção inova na forma de focalizar a atuação da segurança pública na área das políticas públicas de juventude. As discussões, a princípio, eram focalizadas em duas polarizações: de um lado os profissionais que defendiam a idéia de que a violência nas áreas com maiores índices de criminalidade era estrutural, gerada pela falta das políticas públicas fundamentais; portanto, antes de qualquer medida repressiva era necessária a implantação das políticas sociais básicas, principalmente para atender os jovens. De outro lado, os profissionais que defendiam que a violência nestas localidades dava-se pelo desvio de condutas e de desrespeito às leis e, portanto, era necessário um aparato forte e repressor do Estado naquelas regiões, capaz restaurar a ordem.
No entanto, foi possível vencer as divergências e elaborar uma metodologia de trabalho focalizada na proteção à vida dos jovens envolvidos com a criminalidade. Esta metodologia conjuga dois eixos de trabalho separados em suas ações: Intervenção Estratégica, caracterizada pela repressão qualificada e Proteção Social que prioriza sua atuação na mobilização, no suporte comunitário, na articulação dos serviços locais e nos atendimento aos jovens, concretizando-se em oficinas, projetos e atendimentos psicossociais e acompanhamento dos jovens.
A metodologia do programa não é a junção de ações de repressão e assistência social. Ela extrapola estes âmbitos na medida em que cria outros instrumentos para trabalhar com os jovens envolvidos com a criminalidade, portanto, sua concepção é na lógica da segurança como um direito de todos os cidadãos.
A Intervenção Estratégica e a Proteção Social estão separadas porque são executadas por instituições diferenciadas e com ações específicas de acordo com suas delimitações de atuação; porém, estas ações não são desconectadas porque há espaços de discussões que permitem uma articulação entre elas
Os desafios das discussões entre os profissionais destes dois eixos de atuação não se esgotaram na elaboração de sua metodologia; eles são permanentes nos encontros estabelecidos para esta articulação e na elaboração e implementação de ações que exigem um trabalho conjunto. Estas discussões tem permitido inovações contínuas na elaboração de estratégias para trabalhar com os jovens.
Os profissionais da Proteção Social percebem cada vez mais a importância de se conhecerem os jovens e suas atuações dentro da dinâmica criminal local. Conhecer os jovens e suas atuações significa dizer que o programa se interessa pelos adolescentes e seus atos infracionais; e pelos jovens e seus crimes.
 Vale ressaltar que esta articulação se tornou possível porque no sistema de justiça há profissionais que acreditam que, apesar dos jovens utilizarem formas não muito convencionais para se manifestarem, as respostas do poder público não podem ser tão somente através da criminalização de condutas, pela via da repressão e da restrição de direitos.
Vários teóricos discutem os fatores condicionantes da violência como: baixa escolaridade, desigualdade social, desenvolvimento humano, infra-estrutura e defendem que estes fatores não são determinantes para a entrada de um indivíduo no crime. Outra justificativa forte na elaboração de ações de prevenção à criminalidade baseia-se nas teorias do Capital Social. Para os adeptos desta teoria, a violência se estabelece numa comunidade por falta de organização social, daí a importância do trabalho de mobilização comunitária e de parcerias através da articulação de redes de serviços. 
Considerando a complexidade para o entendimento das causas da violência, o programa propõe um trabalho de rede capaz de intervir nas políticas sociais básicas destinadas aos jovens. Estas ações são realizadas de duas formas, com as instituições e com os jovens. Primeiro, problematizando com as instituições encarregadas da implementação das políticas acerca da necessidade de se acolher os jovens nestes serviços que lhes são de direito, tais como: profissionalização, saúde, educação, emprego, assistência social, tratamento para dependência química e álcool. Segundo, discutindo com os jovens, informando-os sobre a existência desses serviços, acompanhando a entrada e permanência deles nesses programas e detectando suas dificuldades na tentativa de minimizá-las.
A concepção institucional do Programa Fica Vivo é de complementaridade das ações; ou seja, um programa que é desenvolvido por um trabalho em rede.  Quando se amplia as ações, tentando abarcar todas as demandas dos jovens, sem conectá-los à rede de serviços, corre-se o risco de desviar a atenção e não se conseguir focar no que realmente é essencial, que no caso específico do Fica Vivo são os jovens envolvidos com a criminalidade. Portanto, é importante sempre que necessário a afirmação de que uma instituição ou um programa sozinho não dará conta de todas as demandas do público que visa atender.
Trabalhando em conjunto e deixando a cargo de outras instituições o que são de suas responsabilidades, os profissionais do programa terão tempo para acolher a demanda dos jovens; orientá-los a procurar por estes serviços; discutir com os jovens as suas reais dificuldades e dar o suporte necessário para que eles vençam os desafios que enfrentam para romper com o círculo da criminalidade.
Ao ressaltar que o foco do programa Fica Vivo é o jovem “envolvido” com a criminalidade, exige-se dos profissionais o cuidado para não contribuírem com a estigmatização dos adolescentes e jovens infratores e, por tabela, àqueles que freqüentam as atividades do programa e até mesmo todos os moradores destas regiões.
No Brasil, segundo Carvalho (2002), uma parcela muito pequena da população pode contar com a proteção da lei para garantir a proteção de seus direitos civis. Os cidadãos seriam divididos em classes: os “doutores”, privilegiados e que estão acima da lei; conseguem defender seus interesses através do dinheiro e do prestígio social e seus vínculos facilitam que a lei funcione sempre a seu favor. Os “cidadãos simples”, que estão sujeitos aos rigores da lei, têm pouca noção de seus direitos e carecem de meios para consegui-los; eles contam com os códigos Civil e Penal que são aplicados precariamente e com muitas dificuldades. E os “elementos”, do jargão policial, a parcela marginalizada da sociedade, têm seus direitos ignorados pelos outros cidadãos e pelo poder público. Para eles a única lei que vigora é o Código Penal.  Eles receiam o contato com os representantes da lei, porque aprenderam, através da experiência, que esse contato quase sempre lhes traz resultados negativos.
O programa Fica Vivo tem como objetivo romper com esta lógica instalada no país, na medida em que possibilita que os cidadãos ao utilizarem dos mecanismos da democracia para solução dos problemas relacionados à violência, sejam reconhecidos e tratados como iguais. Este trabalho é realizado através de discussões dos valores que embasam os valores republicanos e das orientações sobre os instrumentos legitimados pela democracia e ofertados pelo estado à disposição de todos os cidadãos e não apenas de uma parcela de privilegiados.
Alguns teóricos vêm afirmando que a violência no Brasil tem sido utilizada como uma nova forma de exclusão de um público aos seus direitos sociais básicos. Miguel Arroyo acredita que as escolas arranjaram uma nova forma de excluir os alunos. Se antes a exclusão na escola passava pela dificuldade de aprendizagem, hoje passa pelas vias da violência, sobe o rótulo de “aluno problema”. Muitos de nós já ouvimos dos profissionais da educação a frase: “nós não somos preparados para trabalhar com estes jovens. “Se você é violento a sociedade não tem espaço para você”. (ARROYO, 2007). Há uma grande dificuldade da sociedade em aceitar o convívio com os infratores e as políticas públicas não tem conseguido vencer esta barreira para acolherem os ditos “violentos”. No caso específico brasileiro a reação à violência coloca em evidência fragilidade da garantia dos direitos da população mais pobre.
Na tentativa de eliminar os estigmas que adolescentes e os jovens infratores carregam consigo, corre-se o risco de neutralizar suas experiências de violências, infrações e crimes. É muito comum para os profissionais que trabalham em instituições que acolhem os adolescentes e jovens infratores, tentarem neutralizar este estigma, negando que eles sejam violentos. Isto se dá através da negação de seus atos criminosos e na omissão de certas palavras que caracterizam os atos infracionais ou pela renomeação: jovens em situação de risco, adolescentes em conflito com a lei, jovens em vulnerabilidade social, “os outros”. Como diz um oficineiro do Programa Fiva Vivo: “tem os jovens da prevenção e os outros”. Os outros, ele completa, “são os envolvidos com a criminalidade”. Nossa sociedade tem lugar para estes “outros”, os denominados violentos?
O Programa Fica Vivo vem tentando dar visibilidade aos adolescentes que cometem atos infracionais e aos jovens que cometem crimes, trazendo-os para o “mundo dos humanos”; fazendo renascer a humanidade existente nestes sujeitos que a sociedade insiste em apagar.
Para Alba Zaluar (1997), os brasileiros convivem com uma enorme desigualdade social e são poucos os pobres que entram para a criminalidade. É necessário, então, focalizar as ações com os adolescestes e jovens que estão cometendo infrações se quisermos entender os motivos pelos quais cada vez mais um número maior de jovens de todos os estratos sociais comete crimes. Os desafios são enormes, pois ainda não temos instrumentos teóricos que dêem conta da mortandade entre os jovens. Esta convivência que desconhece regras de sociabilidade, que transforma as pequenas diferenças em rivalidades e o outro em inimigo mortal.
Bernard Charlot (2000) considera importante contribuição das teorias do capital social, mas considera que estes saberes defrontam com limites que não podem ultrapassar. As ações concebidas pela leitura negativa analisada através da falta e da carência podem fazer algum efeito; porém, elas não extrapolam os limites, porque não mudam a lógica das políticas em lidar com o este público.

“A leitura negativa reifica as relações para torná-las coisas, aniquila essas coisas transformando-as em coisas ausentes, explica o mundo por um deslocamento das faltas, postula uma causalidade da falta. Esse tipo de leitura gera coisas como o fracasso escolar, a deficiência sociocultural, mas também em outros campos, a exclusão ou os sem-teto. A leitura negativa é a forma como as categorias dominantes vêem os dominados.” (CHARLOT, 2000, p.30).

Este autor sugere, então, que se faça uma leitura positiva do público com o qual trabalhamos. Fazer uma leitura positiva não é enxergar outras habilidades que as pessoas possuem em outras situações. “É ler de outra maneira o que é lido como falta”. Analisar através da carência, da falta é pensar o sujeito como objeto incompleto. Para este autor devemos:

“Considerar que todo indivíduo é um sujeito, por mais dominado que seja. Um sujeito que interpreta o mundo, que resiste a dominação, afirma positivamente seus desejos e interesses, procura transformar a ordem do mundo em seu próprio proveito”. (CHALOT, 2000, p.31).

É necessário, portanto, mudar a lógica da leitura do público com o qual o Programa Fica Vivo trabalha, substituindo a falta pelas suas reais dificuldades e assim, ao invés de vitimizá-los, trazê-los para o âmbito dos direitos de cidadania. O jovem deve ter sua vida protegida e ser acolhido na escola, nos cursos profissionalizantes, na saúde, no esporte, na cultura, porque é um direito dele ser atendido por estes serviços.
Para Aba Zaluar (1997) é necessário que as políticas sociais sejam implementadas no Brasil, porém, a justificativa para implantá-las não pode ser porque “os pobres constituam um perigo permanente à segurança ou que venham a ser classes perigosas”, mas sim porque um país democrático e justo não pode existir sem estas políticas. Além do mais, apesar de vivermos num país com uma enorme desigualdade social, os pobres que “enveredam pela carreira criminosa” são poucos. E estes não podem ser subjugados pelo poder público, pois necessitam de políticas públicas, especiais que considerem o contexto onde vivem e suas ações, tendo eles muito ou pouco controle sobre elas.
Esta premissa dos direitos de cidadania é que orienta trabalho do Fica Vivo, na tentativa de romper com a lógica assistencialista e repressiva e avançar na construção de uma política pública de segurança para todos os cidadãos. E assim, desconstruir  a premissa de que as políticas públicas sociais tem como objetivo suprir às necessidades dos pobres por medo de que eles venham a serem pessoas que envolvam em ações criminosas. Esta visão, além de estigmatizar os pobres, impede os operadores do sistema de justiça de enxergarem e controlarem os crimes cometidos pelos cidadãos diplomados e ricos, principalmente aqueles ligados ao tráfico de armas e drogas, lavagem de dinheiro corrupção e os chamados crimes do colarinho branco[2].
Desta forma, os atendimentos psicossociais, realizados pelos técnicos sociais dos Núcleos de Prevenção à Criminalidade, são instrumentos que o programa lança mão para trabalhar com jovens que praticam infrações e crimes e, portanto, necessitam de ações específicas voltadas para as suas reais dificuldades. As oficinas também contribuem com este trabalho porque nelas os jovens têm oportunidades de fazerem uma leitura da realidade violenta em que vivem e construírem alternativas através do fortalecimento dos laços e das identidades positivas.
O programa Fica Vivo tem conseguido reduzir o número de homicídios nas regiões onde foi implantado, portanto vem se afirmando cada vez mais como um programa de uma política pública de garantia de direitos dos adolescentes e dos jovens. A aproximação dos profissionais com os jovens destas regiões, tem conseguido dar visibilidade às suas formas próprias de manifestações, que são na maioria das vezes vistos como legítimos; e trazidos para o campo da política juntamente com outras reivindicações na luta pela igualdade e liberdade.

Referencias bibliográficas:

ARROYO, Miguel González. Quando a Violência Infanto-Juvenil Indaga a Pedagogia. Revista Educ. Soc. vol.28, nº. 100, Campinas, Out. 2007.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, 1988.  Disponível em www.senado.gov.br. Acessado em 17/10/2010.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei Nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Diário Oficial da União, jul.de 1990.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CHARLOT, Bernard. Da Relação com o Saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiência de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JÚNIOR, Cláudio Santiago Dias.  Capital social e violência: uma análise comparada em duas vilas de Belo Horizonte. Belo Horizonte, 2001. Disponível em: www.cedeplar.ufmg.br/demografia/teses/.../claudio_santiago_dias_junior.pdf. Acesso em 15 de out. de 2010.
LAURENT, E. Como criar as crianças. In: http://www.ebpl.org.br/pdf/2007/Entrevista Eric Laurent.pdf. 2007. 4p.
MINAS GERAIS. Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo! Sistematização da Metodologia do Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo! Belo Horizonte, jun. 2009.
MINAS GERAIS. Policia Militar. Comando-Geral/ 3ª Seção do Estado-Maior. Instrução nº 002/2005: Contém o regulamento sobre a criação e emprego do Grupo Especializado em Policiamento em Areas de Risco – GEPAR. Belo Horizonte, 2005.31p. Instrução 02. Belo Horizonte, 2005.
RUA, M. Graças. Análise de Políticas Públicas: conceitos básicos. Texto mimeografado, 1998. Disponível também em http://vsites.unb.br/ceam/webceam/nucleos/omni/observa/downloads/pol_publicas.PDF. Acesso em 15 de out. de 2010.
SOUZA, Ângela M. D. Nogueira. Oficineiros do Programa Fica Vivo: Que ofício é este? Texto apresentado no Primeiro Encontro de Oficineiros do programa Fica Vivo. Setembro. 2008
ZALUAR, Alba. Exclusão e Políticas Públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. Rev. bras. Ci. Soc. vol. 12 n. 35 São Paulo, Fev. 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php/lng_pt  . Acesso em 15 de out. de 2010.



[1] Pedagoga FaE/UFMG, Especialista em Políticas Públicas para a Juventude IEC/PUC Minas. Supervisora Metodológica do Programa Fica Vivo!. Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Texto publicado na Revista do Programa Fica Vivo 2010-2011.
[2] No Brasil esse termo define o ato delituoso cometido por uma pessoa de elevada respeitabilidade e posição sócio-econômicos e, muitas vezes, representa um abuso de confiança.

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