domingo, 2 de junho de 2024

Livro "Vozes do Povo: Sociedade, política e opinião pública na Guiné-Bissau" de Miguel Carter e Carlos Cardoso (Orgs.)




A Guiné-Bissau continua a ser, meio século depois da independência, em 1974, um dos países mais pobres do mundo, marcado pela má governação crónica e a instabilidade política. Perante este cenário, qual é a opinião dos próprios cidadãos sobre a situação do seu país? Que potencial de mudança pode ser discernido nas suas atitudes? As respostas foram procuradas através de um inquérito inédito. Os resultados, apresentados neste livro, fornecem uma visão única e fascinante da experiência histórica da Guiné-Bissau. Na imagem que emerge, o país destaca-se em duas dimensões: a desconfiança generalizada com relação a seu governo versus a tolerância social e a abertura à cooperação local. Como explica o capítulo de conclusão, esta situação convida a reforçar o potencial de desenvolvimento através da democratização da governação local. O livro apresenta um rico mosaico de capítulos, elaborados por especialistas, sobre a história, estrutura social, vida cultural e religiosa, política, Estado, economia e condições de vida da Guiné-Bissau, concluindo com uma análise da grave disjunção entre o Estado e a sociedade neste país. Em conjunto, eles proporcionam um contexto para a compreensão dos sentimentos populares captados pela iniciativa Vozes do Povo.


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Revista Rosa & Novidade editorial CLACSO

 









 
 
Este livro é produto do colóquio internacional “Pablo González Casanova: 100 anos depois de seu nascimento”, realizado em Guadalajara em 2022. Seus capítulos realizam um trabalho exploratório sobre a obra e a trajetória intelectual de González Casanova, em torno de temas como o dom, história econômica, democracia, poder do povo, do Estado, dos militares e do zapatismo, entre outros.
 
Este volume procura fornecer elementos de análise para abordar e discutir os limites e alcance do legado intelectual do sociólogo mexicano.
 


sábado, 1 de junho de 2024

"Rosa de Hiroshima" - Vinicius de Moraes

 





Rosa de Hiroshima

 




Pensem nas crianças mudas, telepáticas


Pensem nas meninas cegas, inexatas


Pensem nas mulheres, rotas alteradas


Pensem nas feridas como rosas cálidas



 

Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa


Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária


A rosa radioativa, estúpida e inválida


A rosa com cirrose, a antirrosa atómica


Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada


 

Vinicius de Moraes



Para ter acesso ao mais recente livro de poesia "Nas sílabas do vento" do autor do blog clique aqui

José de Sousa Miguel Lopes: “A Lição de Moremi”: combatendo o assédio sexual na Universidade




José de Sousa Miguel Lopes


Universidade do Estado de Minas Gerais


 

 

Introdução

 


A Nigéria é muitas vezes referida como “o gigante da África”, devido à sua grande população e economia. Com cerca de 210 milhões de habitantes é o país mais populoso do continente e o sexto país mais populoso do mundo. É habitada por mais de 500 grupos étnicos, portanto, com mais de 500 línguas. O país está dividido entre cristãos, que em sua maioria vivem no sul e nas regiões centrais, e muçulmanos, concentrados principalmente no norte. (Wikipedia, Nigéria, 2023).

 

A língua oficial é o inglês, sendo o hausa, o ibo e o iorubá importantes línguas nacionais faladas no cotidiano – (Infoescola, 2023). A Nigéria possui 162 Universidades. (Melhores Universidades Da Nigéria, 2023).

 

Nos últimos 20 anos, o país se transformou na segunda maior indústria cinematográfica na produção de filmes do mundo, perdendo apenas para Bollywood na Índia. Hoje, a Nigéria é conhecida como o “Gigante Africano” e lança no mercado interno e externo cerca de 200 filmes por mês. Assim, nasceu Nollywood. Esse nome foi dado a partir de 2002, embora a proposta nigeriana de se fazer cinema não se encaixe no perfil comercial de Hollywood. Porque, tem como principal objetivo a autenticidade e suas narrativas olham unicamente para o continente africano. Essa visão acerca da representatividade está presente no mercado nigeriano. Os próprios produtores locais focam na abrangência de histórias, que são contadas, em sua maioria, em inglês para atrair ainda mais espectadores.

 

O cinema feito na Nigéria tem diversos pontos positivos, sendo a indústria cinematográfica atualmente a segunda maior geradora de empregos no país, ficando atrás apenas da indústria petrolífera. Nollywood, também é autossuficiente na produção de cinema, ou seja, não precisa de subsídios do governo para bancar seus filmes. E, isso aconteceu porque os nigerianos sabem formar público e gerar receitas para seus filmes.

 

As filmagens de um longa-metragem costumam durar cerca de 10 dias e tem um custo médio de três a cinco mil dólares no total. No mercado são vendidas uma média de cinquenta mil cópias em DVD. O preço gira em torno de três dólares. Os lucros são divididos da seguinte forma: um dólar para a produtora, um para despesas com marketing e o outro para o comércio onde está sendo vendido.

 

O curioso é que onde mais se concentra o lucro dessa indústria não é nas salas de cinema, mas no mercado de home vídeo, já que no país, existem pouco mais de 12 salas de exibição. Assistir aos filmes de Nollywood é ter a oportunidade de conhecer melhor a cultura africana e suas diversas identidades, que são apresentadas com diferentes narrativas nas películas, proporcionando outra perspectiva sobre a história e seu contexto, pouco explorado fora do continente.

 

Importa destacar algumas informações sobre Kunle Afolayan, o diretor do filme. Ele nasceu em 30 de setembro de 1975 e é amplamente reconhecido pela qualidade dos seus trabalhos. Fez a sua estreia na direção em 2006 com “Irapada”, um thriller sobrenatural nigeriano, que ganhou o Prémio da Academia de Cinema da África de Melhor Filme em Língua Africana. Posteriormente, fez os filmes “The Figurine”, “Phone Swap”, “1º de outubro” e “Citation” (“A lição de Moremi”). Foi o vencedor dos 16 principais prêmios do cinema africano em 2015 e teve o segundo filme com maior bilheteria nos cinemas nigerianos na época de seu lançamento, feito que Afolayan repetiria dois anos depois com “The Ceo”. (Machado, 2023).

 

Face ao exposto, iremos abordar um dos seus filmes mais recentes: o drama “A Lição de Moremi” (Citation”)


 




Assédio sexual inspira o filme

 

Uma das marcas do assédio sexual é a relação hierárquica de poder que se estabelece sobre a vítima. A expressão assédio sexual foi criada nos anos 1970 por feministas estadunidenses da Universidade americana de Cornell, para identificarem a conduta, com conotação sexual, de um superior hierárquico.

 

Os problemas de assédio em Universidades estão disseminados em várias partes do mundo. Segundo um estudo feito em 2020 pela Associação das Universidades Americanas (AAU), “quase 42% dos estudantes de graduação, pós-graduação, professores e funcionários das Universidades dos Estados Unidos se disseram vítimas de algum tipo de assédio, de contato sexual não consensual a perseguição e estupro” (Pesquisa FAPESP, 2022, s/p.). “Dados recentes mostram que mais de 5% dos estudantes de doutorado na França foram assediados sexualmente” (Feresin, 2023, s/p.).

 

No caso do Brasil, de acordo com uma pesquisa realizada pela física Carolina Brito e por outros colegas da UFRGS, cujos resultados foram publicados em 2022 em um artigo na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências:



o assédio sexual é cometido principalmente por homens, que podem ser professores, funcionários ou estudantes, enquanto o moral também é praticado por mulheres, ainda que em proporção inferior à dos homens. Só 6,5% dos professores, 7,5% dos estudantes e 11,3% dos servidores vitimados por assédio sexual fizeram denúncias formais, em um sinal de que essa prática é pouco combatida. (...) Por volta de 47% das mulheres e 12% dos homens entrevistados relataram ter sofrido assédio sexual durante a carreira (Marques, 2023, s/p.).

 



Um dos dados do estudo “O perfil do cientista brasileiro em início e meio de carreira”, divulgado em 2023 pela ABC, aponta panorama semelhante. Por volta de 47% das mulheres e 12% dos homens entrevistados relataram ter sofrido assédio sexual durante a carreira (Idem).

 

Bianca Spode Beltrame, que atualmente faz doutorado em administração na UFRGS, produziu um levantamento em 2018 que se tornou referência para estudos sobre assédio em Universidades. Ela enviou questionários para dezenas de instituições federais de ensino superior. A pesquisa avaliou o panorama do combate e da prevenção institucional do assédio em 71 delas. O trabalho demonstrou que 52,3% não possuíam nenhuma política de prevenção ao assédio e 70% delas não adotavam medidas para combater o problema. (Ibid).

 

Importa salientar que em 7 de outubro de 2019, a jornalista e cineasta indicada ao “Emmy” Kiki Mordi lançou um documentário “Sexo por notas” (13 minutos), para o programa “Africa Eye” da BBC, expondo a tradição de sexo presente nas Universidades nigerianas (Mordi, 2023).

 

Após o lançamento desse documentário, as plataformas de mídia social na Nigéria tornaram esse assunto o mais comentado durante várias semanas. Perplexos, os nigerianos começaram então a se questionar como foi possível uma questão tão grave não ter chegado ao domínio público. O documentário “Sexo por notas” mudou completamente as noções de agressão sexual e reiterou uma verdade muitas vezes negligenciada sobre o lugar do poder na solicitação de sexo em troca de melhores notas. Embora muitos possam ter considerado essa tradição prejudicial na estrutura acadêmica nigeriana, só depois do lançamento deste documentário se começou a ver a dimensão dos danos que estes comportamentos realmente causam às estudantes que são vítimas desta armadilha.

 

É seguro dizer, então, que a influência sísmica desse documentário deu origem, ou pelo menos inspirou o filme “A Lição de Moremi”.

 

Para a maioria das estudantes na Nigéria, o assédio sexual é um rito de passagem e a maioria é terrivelmente perseguida por casos amorosos envolvendo professores do sexo masculino em troca de notas excelentes. Como isso ocorre dentro da dinâmica de poder, as estudantes geralmente ficam desamparadas, às vezes acovardadas e coagidas a submeterem-se a esses comportamentos. Infelizmente, existe uma cultura generalizada de silêncio que torna isso quase endêmico. Ou, se houver uma brecha, esse problema costuma ser varrido para debaixo do tapete antes de ganhar a atenção da mídia. Impulsionada pelo impulso global, a onda #MeToo da Nigéria tornou-se um momento muito propício para a prestação de contas dessas lamentáveis aventuras lascivas, sobretudo em instituições que deveriam servir de exemplo para a sociedade.

 

No início do filme, vemos uma estudante universitária praticando sexo com seu professor em troca de um aumento nas notas, um aumento que, pelo que podemos vislumbrar na trama, ela merecia. Amparada pelas provas que ela coletou ao gravar a ligação com o professor, bem como as provas de um namorado disposto a revelar os ilícitos do próprio professor, a trama sofre uma reviravolta complicada que resulta na morte do palestrante e na expulsão dos alunos envolvidos.

 

O filme mostra-nos Lucien, um professor de Ciências Sociais muito viajado e com uma aparência cordial. Isso é um atrativo para os estudantes se aproximarem dele, ao mesmo tempo que ele utiliza a camaradagem como um mecanismo para conquistar seu objeto de desejo, Mọremi. Ao atribuir a ele esse status de masculinidade, o diretor Afọlayan retrata-o como um indivíduo manipulador que, aparentemente, não sabe dirigir um automóvel, embora possua um no Senegal. Ele está envolvido em atividades criminosas como estuprador e é um mentiroso incorrigível que engana Moremí dizendo que conseguiu uma entrevista para ela nas Nações Unidas. Ao longo das cenas de depoimento, ele é visto invertendo a narrativa para balançar o status de vitimização para si mesmo. Além disso, no tribunal assume seu perfil acadêmico e seu privilégio patriarcal gritando seus êxitos com o representante dos estudantes.

 

O filme apresenta-nos Moremi, uma brilhante estudante da pós-graduação. A sua jovialidade e inteligência despertam o interesse do recém-chegado à Universidade, o professor Lucien. Este começa a usar de sua posição para ficar perto de Moremi, algumas vezes fingindo-se de tutor, outras fingindo não saber se localizar em Lagos (Nigéria), por ter vindo de outro país. Por isso, conta com o auxílio de Moremi que, às vezes, percebe os galanteios do professor, mas está encantada com sua inteligência e não acredita que ele lhe possa fazer mal. A estudante desenvolve uma relação de confiança com Lucien, reage com surpresa aos primeiros avanços impróprios e demonstra resiliência antes da tentativa de estupro.

 

Quando seu caso se torna público e é veiculado pela mídia Moremi enfrenta preconceitos, ataques à sua reputação e questionamentos acerca de sua conduta, até acusações de estar mentindo e sendo oportunista tanto por parte de seus colegas de curso como de professores e da sociedade em geral. Sua amiga e seu namorado também entram na lista daqueles que hostilizam e desconfiam dela durante o processo de julgamento.

 

Com apenas 21 anos ela denuncia ao conselho acadêmico o prestigiado professor, por tentar estuprá-la. Contudo Moremi é desacreditada em meio ao processo disciplinar que se desenrola na investigação. O professor é um intelectual respeitado mundialmente pela atuação como docente e tutor. É sabido que em muitas Universidades nigerianas a agressão sexual por parte de professores é muito frequente, mas raramente é abordada, exceto quando as mulheres se sentem obrigadas a apresentar provas, nomeadamente revelando evidências em vídeo ou áudio porque, infelizmente, sua palavra nunca é suficiente. 





O processo judicial como elemento central na trama

 

O filme se passa, em grande parte, no tribunal criado pelo comitê da Universidade, e os flashbacks dos momentos contados por ambas as partes são trazidos aos espectadores. Mesmo não havendo dúvidas para quem assiste o filme, o comitê da Universidade levanta muitos questionamentos sobre a veracidade do caso, e a tensão sobre o veredito permanece até os minutos finais do filme.

 

“A Lição de Moremi” é contada principalmente através do processo judicial no qual Moremi tenta convencer o tribunal, composto pelos principais membros do corpo docente, da verdade de sua história, que requer um sistemático recurso à memória. Ao tentar provar sua inocência no tribunal, Moremi encontra-se naquele inescapável turbilhão de lembranças agudas. Como costuma acontecer ao relembrar eventos traumáticos, esse processo necessário de recuperação de memórias terríveis não é linear. Enquanto Moremi compartilha sua história com o tribunal sua confiança é questionada.

 

O filme é, simultaneamente, uma obra que aborda tanto a exploração sexual em espaços acadêmicos por pessoas investidas de poder, quanto sobre os sistemas que permitem que sua exploração prospere e fique impune. No entanto, em vez de procurar revelar uma justiça adequada num sistema funcional que os nigerianos desejam, o roteiro tem dificuldade em questionar o sistema judicial.

 

No início pede-se que confiemos nos sistemas de justiça à nossa disposição. É claro que esse é um conceito difícil de ser aplicado, visto que esses sistemas provaram ser profundamente disfuncionais na vida real. Qualquer sistema de responsabilização forte precisa de um histórico de funcionamento suficiente para que as pessoas confiem nele. Contudo, o filme não consegue interrogar como esses sistemas falharam no passado.

 

“A Lição de Moremi” retrata esse pesadelo sem fim, de estigma e reação, que tem lugar durante o Comitê que investiga tais acusações. O filme é contado no tempo presente e corta para flashbacks quando as duas partes contam suas versões dos eventos durante as audiências no tribunal. Ora estamos vendo uma cena atual, do presente, ora somos levados a algum flashback para compreender a cena. A mistura entre presente e passado pode ser complexa de entender se você tirar os olhos da tela, ainda que por um minuto.

 

No entanto, a maioria das sequências de flashback é vista a partir da perspectiva de Moremi, que é forçada a questionar o novo mundo que passou a conhecer neste campus. Este mundo inclui seu relacionamento com o professor Lucien, seus dois colegas de curso, seu namorado e colegas tutores que constituem o restante das testemunhas. Todos eles têm lembranças e histórias diferentes para contar sobre o relato dos eventos sobre o que realmente aconteceu. Embora alguns desses relatos sejam apenas julgamentos baseados no que eles perceberam como estranhos, outros também carregam intenções maliciosas.

 

O filme é também surpreendente e generoso com o uso do humor para enfatizar o pavor crescente que acompanha Moremi, protegida unicamente pelas suas próprias palavras e sem nenhuma evidência concreta imediata. Angustiada, interroga-se se o tribunal acreditará ou não em sua história.

 

As alegações de Moremi não são exatamente aceitas desde o início, pois o julgamento rapidamente se transforma em uma dinâmica de ele-disse-ela-disse. Flashbacks revelam a vida e a comunidade de Moremi, destacando as muitas complexidades de sua reivindicação à medida que a verdadeira natureza de sua experiência vem à tona. Não se trata aqui de uma ambiguidade narrativa: Lucien, o professor admirado e altamente apreciado por seus estudantes e colegas não é, claramente, culpado.

 

Observar os eventos parcialmente recontados a partir das perspectivas daqueles em torno dos dois assuntos principais oferece perspectivas fascinantes sobre como as pessoas realmente veem essas relações professor-estudante. Elas preferem tirar suas próprias conclusões com base em sentimentos e crenças pessoais. Todas elas apenas testemunham eventos se desenrolando de fora da bolha, mas não conseguem juntar exatamente as peças espalhadas. Até que chega o momento em que seus relatos podem ser apenas a história de testemunhas oculares necessárias para salvar alguém, e elas apenas contam inocentemente com base nas suas crenças ou malícias.

 

A investigação se transformou em um momento marcante para o feminismo, pois o ciberespaço nigeriano foi inundado por narrativas de fracasso moral e estruturas opressivas não apenas em instituições terciárias nigerianas, mas também na ordem pentecostal cristã e no setor corporativo. 





O trabalho do diretor e o recurso aos flashbacks

 

O filme tem uma excelente direção de arte, boa maquiagem e penteados, belo e exuberante figurino africano, com as cores alegres, fortes e vivas das lindas vestimentas desse povo, que concentra a maior população negra do mundo. Kunle Afolyan também maximiza as locações muitas vezes negligenciadas em outros filmes nigerianos, como é o caso de ter filmado lindas imagens em dois outros países africanos, Senegal e Cabo Verde, que quase nos fazem esquecer a pesada temática.

 

Outro aspecto relevante é a música ambiente com Youssef Ndour, Babátúndé Ọlátúnjí e outros destacados músicos nigerianos.

 

Os atores desempenham seus papéis com uma dedicação notável e os diálogos, marcados pelo discurso acadêmico, impregnam o filme através de uma narrativa profunda e envolvente. Kunle Afolyan escalou Temi Otedola, uma aspirante a atriz em sua atuação de estreia, para o papel principal do filme – uma jogada ousada que vale a pena destacar.

 

O diretor é cuidadoso na sua narrativa o que dá para perceber pelo ritmo suave, mas também perturbador, pelo qual A Lição de Moremi é contada.

 

À medida que a ferida dessa história vai, lentamente, sendo exposta acabando por ser totalmente reconhecida, pode-se concluir que o diretor não está muito preocupado em não cometer erros, mas sim em contar uma boa e convincente história.

 

A utilização de flashbacks é o ponto forte de Kunle Afolayan. A Lição de Moremi é capaz de manter uma unidade como história, não apenas pelos personagens lembrando eventos passados e construindo-os com a ajuda de uma gradação de núcleos impressionantes e atuando de forma confiável, mas fazendo isso com uma inserção adequada nos contextos e recuperando eventos que antes eram considerados irrelevantes. Ora estamos vendo uma cena atual, do presente, ora somos levados a algum flashback para compreender a cena. Os flashbacks, além de ilustrativos, estão ali para contradizer as mentiras de Lucien de modo grosseiro, sem nenhuma sutileza. Se no depoimento ele menciona ter ouvido palavras inapropriadas de Moremi, a cena subsequente mostrará o contrário. E assim por diante.

 

A sequência de ações no filme não mantém uma via unidirecional, e muitas vezes, o enredo é um detalhe lapidar enrolado em camadas de flashbacks e histórias de fundo que concretizam a estética fílmica à medida que a vida passada de Lucien se torna mais vívida. Outras vezes, o filme prenuncia o perigo que está por vir, como no caso de Kóyèjọ, estudante do último ano de medicina, ensinando Moremí a se defender em caso de assédio sexual.

 

Afolayan soube escolher a contento o diretor de fotografia que fornece uma imersão constante na natureza contraditória do mundo independente da Universidade, em que cada olhar que passa leva a um sentimento crescente de paranoia para a vítima e seu papel em uma comunidade “capturada” para desconfiar de suas queixas.

 

Ao retratar um ambiente onde a cultura do estupro foi normalizada, devido a suposições opressivas relacionadas a gênero e sexualidade, Kunle Afolayan oferece um alerta inabalável que se estende muito além das fronteiras da Nigéria. Ele tornou-se um nome familiar na indústria cinematográfica deste país, com filmes que revelam que ele é um autor a ser considerado. Com isso, Afolayan desfruta de generoso patrocínio acadêmico.






Considerações finais

 

A lição de Moremi” e um filme muito direto que organiza opticamente as peças do quebra-cabeça para os espectadores e não deixa nada para o subtexto. O filme não tem a pretensão de apresentar surpresas alucinantes. Apenas deseja contar a história como ela realmente acontece nos campus nigerianos. Tem um ritmo lento e um roteiro interessante, que aborda um tema pertinente e atual.

 

Observemos o exemplo e luta de Moremi para contestar as nefastas consequências do sistema patriarcal e racista construído e legitimado historicamente, para transformar em um movimento amplo, unitário, para pavimentar um caminho para desconstruir e eliminar as práticas sexistas.

 

O filme é também uma reflexão sobre o que significa ser simplesmente uma jovem que quer ter sua vida de volta, terminar sua pós-graduação e perseguir seus sonhos, por mais ingênuos que possam parecer.

 

Além de relatar uma realidade que de fato ocorreu, também retrata as vivências de muitas jovens estudantes que sofrem com professores abusivos em ambientes acadêmicos, além de demonstrar como a cultura do estupro ainda permanece forte nos dias atuais. É uma obra que trata do importante tema da violência contra a mulher, sendo uma entre as milhares de histórias de jovens corajosas que conseguem usar sua voz para denunciar os casos de que são vítimas.

 

Há também momentos de melancolia: quantos casos de agressão chegam ao conhecimento público? Existem grupos de defesa para vítimas de agressões sexuais nas Universidades? Quantas pessoas têm o privilégio financeiro de viajar para outro país para encontrar provas do histórico de agressão de um homem?

 

Em suma, “A Lição de Moremi” oferece uma profunda reflexão artística sobre os graves problemas na Universidade, a torre de marfim africana, instituição que deveria servir de bússola moral para a sociedade.

 

O sistema patriarcal de gênero é um sistema de dominação-exploração, pois não existe um processo de dominação separado de outro de exploração, ou seja, de um lado a dominação patriarcal e de outro a exploração capitalista. A lógica das relações de produção no âmbito das transformações do capital se expressa, em alguma medida, de forma mais perversa para as mulheres. Mesmo tendo clareza que essas transformações atingem de forma geral o conjunto da força de trabalho, seja ela formal ou não, e aqui já reside uma parte perversa desse processo, pois a informalidade e precarização, em muito expandida pelo modelo de acumulação flexível, restringem direitos e geram um contingente de desprotegidos legais. O quadro se agrava quando analisamos esses rebatimentos no trabalho das mulheres, em que pese às tendências que afirmam o aumento de mulheres no mercado de trabalho, esse aumento ocorre de forma precarizada, desprivilegiada do ponto de vista econômico e social e com maior incidência de práticas violentas, em especial da prática do assédio sexual.

 

O assédio sexual, em sua natureza criminal e ilícita dá-se em várias relações e em distintos espaços, tanto públicos como também em espaços privados, o que torna o ambiente universitário um local dentre os quais tal ato ocorre.

 

Alguns dirão: que mal haveria num simples elogio sobre a roupa, o corpo, ou a inteligência de uma mulher? Nenhum problema se não tiver um tom de sedução e não der a entender que a aluna o estaria seduzindo com sua vestimenta, seu corpo ou sua bela explanação. Nenhum problema se o professor não colocar a aluna num lugar de possível sedutora, como se sua beleza ou inteligência fosse irresistível, como se ele pudesse justificar para si mesmo o seu ato e assim se desresponsabilizar de todas as consequências nocivas que daí advenham, especialmente para a vida da mulher em questão. Atos de assédio sexual são possíveis causadores de danos psíquicos e de incontáveis prejuízos profissionais, especialmente quando a assediada se vê obrigada a ter de continuar, por fazer parte do mesmo ambiente de trabalho, a conviver com o agressor, tendo muitas vezes de suportar suas constantes investidas, por não estar em condições de denunciá-lo ou detê-lo.

 

O ato em si já é constrangedor para a mulher numa situação hierarquicamente inferior como aluna e, mais ainda, se ela estiver numa situação de dependência como bolsista, como é o caso da aluna Moremi. Ou seja, se o ato for de um professor a situação é grave, mais grave ainda se for de um orientador que assina pela bolsa da aluna de graduação ou pós-graduação, pois mais poder acumula tal professor, o que lhe faculta maior ascendência sobre a orientanda, e menor possibilidade de reação da aluna por medo de perder a bolsa e ainda ser difamada no meio acadêmico e supostamente ter arruinada a possibilidade de um dia alcançar o cargo de professora.

 

Assim como devemos apoiar as iniciativas daquelas que denunciam o assédio nas ruas, nas instituições religiosas, nos aparelhos de cultura, nas instituições de saúde, nas assembleias e no Congresso, é fundamental que as Universidades tenham por princípio o respeito às mulheres e o repúdio a toda e qualquer forma de violência sexual e de gênero.

 

Precisamos dizer não, com todas as letras, ao assédio. Dizer não ao assédio é não aceitar mais que mulheres sejam vistas como objetos sexuais passivos ou como vítimas frágeis do poder dos homens, como Lucien, ou como sedutoras irresistíveis. Dizer não ao assédio é afirmar que as mulheres podem e devem ter controle sobre a própria sexualidade. É mostrar que podemos elevar a voz e o poder das mulheres na academia e na sociedade. É não submeter as mulheres aos papéis sociais tradicionais que lhes atribuem os Luciens machistas protegidos pelo patriarcado ainda vigente. É garantir que elas possam ocupar, sem constante sujeição à violência de gênero, o espaço público de debate, essencial ao funcionamento saudável de uma democracia.

 

Uma prática silenciosa e constante de cantadas dos professores em relação às estudantes, algo que remete à suposição, tão presente em inúmeras culturas, de que mulheres só poderiam garantir seu espaço na Universidade, e na própria sociedade, através do corpo e não em função de seu discurso. E, pior ainda, que o corpo das mulheres é um território comum, passível de invasões que não necessitam de consentimento.

 

Trata-se, portanto, do combate ao assédio como estratégia de afirmação de um direito. A mulher não é território a ser conquistado ou colonizado, ela é sujeita. Não é vítima, mas agente de seus próprios direitos. Não ficam ruborizadas com supostas cantadas; ficam, sim, indignadas com a suposição de que estão à disposição de conquistadores que as colocam no lugar de sedutoras para não se verem como assediadores.

 

O assédio sexual precisa, por isso, ser entendido por toda a comunidade acadêmica como um problema político, no sentido mais amplo deste termo. A reivindicação é a de que homens sejam desautorizados a menosprezar as mulheres como estudantes ou como pesquisadoras, a subalternizá-las como secundárias, a emudecê-las nos debates, a ignorá-las em reuniões, a impedi-las de ter acesso a cargos de coordenação e direção.

 

Mas iniciativas com efeitos transformadores só surtirão efeito se as mulheres puderem contar com a escuta de sua área como um todo e com o apoio dos professores sensibilizados com a causa, se as instituições universitárias e de fomento à pesquisa, especialmente pelas ações daqueles e daquelas que nelas trabalham e tomam decisões, assumirem o mesmo repúdio ao comportamento nocivo que ocorre tão frequentemente no interior das Universidades. Só assim é possível abrir caminho à construção de relações de gênero mais justas no meio acadêmico.


 

Referências



FERESIN, Emiliano. Universidades suíças enfrentam o assédio sexual. SWISSINFO.CH, 08/03/2023. In: https://www.swissinfo.ch/por/economia/tpt-08.03-universidades-su%C3%AD%C3%A7as-enfrentam-o-ass%C3%A9dio-sexual/48318634 (Acesso em 12/06/2023)



MACHADO, Jéssica. Nollywood – O cinema Nigeriano. In: https://mundonegro.inf.br/nollywood-o-cinema-nigeriano/ (Acesso em 06/06/2023)



MARQUES, Fabrício. Retratos de comportamento abusivo. In: https://revistapesquisa.fapesp.br/retratos-de-comportamento-abusivo/ (Acesso em 17/08/2023)



MELHORES UNIVERSIDADES DA NIGÉRIA. Melhores Universidades da Nigéria. In: https://pt.alinks.org/best-universities-in-nigeria/ (Acesso em 06/06/2023)



MORDI, kiki. Kiki Mordi. In: https://en.wikipedia.org/wiki/Kiki_Mordi (Acesso em 06/06/2023).



NIGÉRIA. Wikipedia-Nigéria. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nig%C3%A9ria (Acesso em 06/06/2023).



NIGÉRIA – Infoescola. In: https://www.infoescola.com/africa/nigeria/ (Acesso em 06/06/2023).



PESQUISA FAPESP. Universidades norte-americanas investem em medidas para identificar indivíduos com histórico de má conduta sexual durante a contratação. (12/10/2022) In: https://revistapesquisa.fapesp.br/universidades-norte-americanas-investem-em-medidas-para-identificar-individuos-com-historico-de-ma-conduta-sexual-durante-a-contratacao/#:~:text=Segundo%20um%20estudo%20feito%20em,consensual%20a%20persegui%C3%A7%C3%A3o%20e%20estupro. (Acesso em 12/06/2023)


O texto faz parte do livro "A Universidade vai ao Cinema" que pode sr acessado clicando no Link para acesso gratuito ao livro



Para acessar o filme integral com legendas clique aqui


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