terça-feira, 3 de janeiro de 2023

"Diálogos e solilóquios" - Fernando Rios & José de Sousa Miguel Lopes

 


FOTO: FILIPE AZEREDO RIOS



A HORA É DE (PA)LAVRAR


DE NÓS, SUJEITOS E SEUS PREDICADOS


JUNTARMOS BOAS LETRAS/SEMENTES


E SEMEARMOS E ADUBARMOS


E COLHERMOS


JUNTOS


      DE CORPOS E ALMAS


A PALAVERBO AMAR



 

segundo diálogo de fernando rios



com josé de sousa miguel lopes[i]



 

 

I / FR


de repente, o homo sapiens inventou a palavra                                       

e, entre choros e risos, parou de grunhir


ninguém sabe quando e como


mas sua vida mudou


 

ficamos mais humanos?


passamos a compreender melhor o outro?


passamos a amar mais?


passamos a odiar mais?


quanto de poder entrou na palavra?


 

a palavra ama, canta e dança


a palavra odeia, tortura e mata


 

que estranha e reveladora palavra tão hominídea


que tanto embrulha para presente


quanto enrola em mortalha


 

que ambígua sapiente idade


nos seus milhões de anos de vida


e nos seus milhares de anos palavrando


 

palavrando o quê, para quê, para quem?


para nós? quem somos palavrosamente nós?



 

II / JSML



 

vivemos em um mundo ruidoso


de muitas palavras


de muito diz que diz


 

somos internautas, twiteiros.


temos celulares sempre à mão,


em qualquer tempo e espaço


queremos que nos leiam, nos ouçam,


porém, sabemos pouco de parar e ouvir.



 

 

III / FR



 

há quem fala e quem não fala?


quem vale mais? quem pode mais?


 

e quem responde à pergunta de gayatri chakravorty spivak:


“pode o subalterno falar?”


quem é o subalterno? ele tem palavra?


e quando ele fala, quem ouve?


 

onde é guardada a palavra de quem não fala?


quanto de câncer explode na garganta que engole a palavra?


 

quando a palavra se transforma em afeto?


quando a palavra se transforma em cutelo?


 

quanto pode uma palavra?


nua ou vestida, a palavra afaga e acaricia


vestida ou nua, a palavra intimida e açoita


 

o que fazemos com a palavra?


 

ela dorme serenamente no dicionário


mas quando acorda, quando a acordamos


se transforma... em quê?



 

IV / JSML



 

quantas vezes impedimos o diálogo?


na ânsia de falar, não escutamos.


temos muitas desculpas para não ouvir o outro


e temos sempre imensa vontade de falar


 

o falar domina? o falar aniquila?


 

queremos ser ouvidos, mas não queremos ouvir.


escutar, ouvir... é muito mais difícil.


 

para ouvir, temos que ficar em silêncio,


temos que prestar atenção,


temos que esquecer nossos pensamentos


e deixar que a ideia e a voz do outro,


que nos fala, que nos chega


que entra em mim, que entra em nós.


 

precisamos calar


 

e temos que reconhecer que o outro existe


e que tem algo para nos dizer.


e ouvindo de verdade o outro


podemos pensar trocar ideias


ganhar ideias trocar palavras


ganhar palavras aprender


e criar novas realidades


juntos



 

V / FR



 

onde está a palavra? numa página ao léu?


no tempo, no espaço, na memória?


no céu da boca, na boca inteira?


em que cérebro mausoléu?


em que corpo exposto ao público?


 

que palavra enche a boca, mas esvazia o coração?


que palavra conta história, mas enterra o passado?


 

que palavra escorre dos olhos?


que palavra afaga? que palavra afoga?


 

alguma palavra enche o estômago?


 

e as palavras sobre as peles


protegem do frio, aliviam o calor?


que palavras falam e calam


em silenciosos estardalhaços?



 

VI / JSML



 

o silêncio não é a negação da palavra,


como a palavra não é tampouco a negação do silêncio.


 

há silêncios eloquentes, palavrosos


como há palavras vãs, vazias


 

o rumor de nossas palavras só tem sentido


porque nelas se reflete o mundo infinito


que está para lá de sua sonoridade:


o mundo dos sentimentos, das ideias,


das grandes realidades.

 

 

silêncio e palavra:


dois instrumentos que se completam.


 

existe um silêncio expressivo


e uma intensa palavra silenciosa,


 

há um silêncio que fala, capaz de dizer tudo e qualquer coisa

e uma palavra oca, que diz nada

 

o silêncio é também o lugar de sentidos


que se fazem fora da representação da palavra,


sentidos que estão no imaginário humano,


nas tramas do que o sujeito aprende


e transforma em fantasia, em imaginação.

 

 

estamos perante uma cartografia de afetos,


perante acenos esplendorosos à poesia,


à amorosidade, à vida


juntos



 

VII / FR



 

que palavras emitem os sarados corpos outdoors?


que palavras estancam as veias abertas nos campos de batalha?


que palavras cavalgam utopias?


que palavras trafegam pelos bueiros?


que palavras promovem euforias?


que palavras carregam alforrias?


 

somos ilhas cercadas de palavras por todos os lados


em que vasto oceano nos metemos


nós de palavrosa mente?


 

e muitas vezes


numa violência analfomegabetista


emudecemos o outro


 

e se não ouvimos sua palavra


no mínimo


precisamos começar a ouvir seu agoniado silêncio


porque quando sua voz explodir


pode nos emudecer



 

VIII / FR



 

as palavras falam e querem dizer


toda  palavra pode ser grandiosa


solidária, fraterna, palavra/comunhão


 

(pense na palavra que você quer falar


ela diz o que você quer dizer?


ela esmaga o outro


ou faz dele um belo renascer?)


 

pobre ser humano rico ser humano


quantas palavras para tantos corpos


quais quantos podem ser palavrados?


 

entre a palavra branco e a palavra negro


cabem quantas palavras/peles coloridas


sem deixar feridas?


 

entre macho e fêmea


cabem quantas palavras/gêneros


de infinitas amorosas moradias?



 

IX / FR



 

ser humano é masculino humanidade é feminina


juntos, ser humano e humanidade


engravidaram-se arcoiristicamente


de mulheres homens lésbicas gays bissexuais transsexuais


travestis queers questionandos intersexos curiosos


assexuais pansexuais polissexuais aliados two-spirits kink


demissexuais e tantos quantos mais sexos


e tantos quantos mais gêneros enfim


LGBTQQICAPF2K+ e mais e mais e mais


seres humanos humanitários humanitárias


com suas todas palavras


ávidas aves águias beija-flores



 

X / FR



 

a palavra é conteúdo e continente


a palavra pode aquecer sem queimar


a palavra pode abraçar


a palavra pode quase tudo


para o bem e para o mal


então, por que e quando ela se transforma em punhal?



 

XI / JSML



 

palavra escrita, falada, dançada, repetida, insistente, coerente, carinhosa, poética, criativa, de ânimo, de consolo, do outro, palavra minha, partilhada, ouvida, de mãe,


de filho, de acalanto



 

XII / FR



 

palavra é tanto e tudo


que poderia remeter sempre ao convívio


e não ao martírio


 

e tanto e tudo


que poderia remeter à alegria


à euforia


e não à tristeza, à melancolia


 

e tanto e tudo


que poderia remeter à vida


e não à triste sina


 

quando teremos esta sorte:


palavra vida


mais forte que a palavra morte?



 

XIII / JSML



 

palavra que move sonhos


que se levanta contra a injustiça


que carrega teorias


que ilumina a prática


que arrasta multidões


que cura a ferida


que enxuga as lágrimas


palavra que conta histórias


palavra na vida


palavra vida



 

 

 

XIV / FR



 

este tempo e espaço de ser humano


precisa viver o outro viver no outro


 

este tempo de humanidade precisa agregar o outro


incluir e agregar o outro do outro onde estou


o que sou eu senão o outro do outro do outro do outro


que somos todos nós e outros?


 

e então, de mãos dadas, de corpos dados


celebrar a palavra vida e cantar uma ciranda


num cordão mundial


 

seres humanos e humanidades


unam-se abracem-se amem-se cantem-se


vivam-se, vivamo-nos cada segundo


intensamente


juntos


 

há que tentarmos


a boa palavra quer e precisa falar e dizer


 



1 Os textos de José de Sousa Miguel  Lopes foram extraídos do posfácio que ele escreveu para o livro:


CARTAS GRAVADAS. Celebração da voz na formação docente


ROSELETE FAGUNDES DE AVIZ / ROSILENE KOSCIANSKI DA SILVEIRA.


Editora Appris, Curitiba, 2022


Este livro é uma síntese teórico-poética sobre a autoria narrativa na formação inicial de professores, viagem de formação, que tem sido desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina. É fruto das interlocuções com professores e estudantes, mas também escritores, leitores, contadores de histórias, cineastas


Leia a íntegra do Posfácio aqui


Leia o primeiro diálogo nestes endereços:


A TERRA É REDONDA


NAVEGAÇÕES NAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO


RUÍDO MANIFESTO



fernando rios é jornalista, poeta e artista plástico.


José de Sousa Miguel Lopes é professor e pedagogo.

 

 

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