sábado, 22 de setembro de 2018

Andrew Fishman: "O país sem corrupção"

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"O país sem corrupção"

Andrew Fishman 

Não consigo contar quantas vezes eu já ouvi uma versão dessa pergunta desde que me mudei para o Rio. Depois de décadas de decepções políticas e anos de "o PT inventou a corrupção", parece um mantra quase religioso para a maioria da população: Brasil está quebrado, mas lá fora as coisas são simplesmente ótimas. A retomada da migração de brasileiros para o exterior parece comprovar a tese.

Quando estou cansado respondo "ah, aqui é legal também". Mas nos raros momentos em que estou bem humorado e suficientemente cafeinado, tenho uma resposta pronta que muitas vezes até consegue rachar a certeza do interlocutor: 

Olha, o Brasil tem um problema com corrupção, sim. Lava Jato, Cabral, Cunha, grandes e pequenos roubos aqui e ali, sem dúvidas. E isso atinge a vida de todo brasileiro. Mas os Estados Unidos é ainda mais corrupto, com um impacto ainda mais nefasto na vida das pessoas e no mundo em geral — só que a corrupção lá tipicamente é mais sofisticada (e, por isso, mais eficaz).

No Brasil, a maioria dos grandes escândalos revelados recentemente têm mais ou menos o mesmo roteiro: faz um contrato superfaturado → Paga uma porcentagem em propina para o governante → Pronto! Lucro!

É um esquema muito óbvio que pode gerar milhões. Nos EUA, isso acontece também, mas o sistema não permite que seja uma regra, pois é preciso manter a aparência de legitimidade. Este mês faz 10 anos desde o início da crise financeira de 2008, ou, como eu chamo, o maior golpe na história do mundo. E foi montado e executado nos EUA. 

  1. Bancos pequenos ofereceram empréstimos habitacionais para pessoas que nunca dariam conta de pagá-los, sem nem verificar se as pessoas tinham renda.
  2. Os títulos desses empréstimos foram revendidos para bancos maiores que não verificavam sua qualidade.
  3. Depois, bancos grandes embalaram milhares destes títulos e criaram um novo tipo de produto bancário para investimentos, revendendo isso às pessoas.
  4. Eles pressionaram as agências de classificação de risco a dar uma nota boa aos produtos (ou perderíam os bancos como clientes).
  5. Com o selo de qualidade, revenderam os bolões de empréstimos de financiamento habitacional na bolsa como investimentos extremamente seguros.
  6. Os bancos acumularam centenas de bilhões com estes investimentos, mas assim que perceberam que o golpe estava chegando ao fim e a bolha ia estourar, correram para vender o que puderam a qualquer preço para qualquer azarado que ainda não soubesse que o jogo estava acabando (99% das pessoas).
  7. Assim, liquidaram uma grande quantidade desses bens tóxicos de suas contas e tinham seguro para garantir o resto. Terceirzaram criminosamente todo o prejuízo.
Mas não foi suficiente. Vários bancos e suas seguradoras entraram em crise. O primeiro banco a cair foi Lehman Brothers, o segundo foi Bear Sterns e o governo teve que entrar com bilhões para resgatar o resto e evitar o colapso da indústria inteira. 

Durante a fraude, todos os envolvidos no processo ganhavam comissões por cada transação, o que os incentivava a vender cada vez mais. Depois que a bomba estourou, descobrimos que muita gente sabia que ia dar merda, mas ninguém quis dar ouvidos, já que estavam ganhando rios de dinheiro na época. E essa bomba acabou tendo efeitos catastróficos, entre eles:

  • US$14 trilhões da economia mundial pegou fogo e *poof*, desapareceu
  • Corroeu 3.5% do PIB mundial
  • Gerou 34 milhões de desempregados mundialmente
  • Milhões de americanos perderam suas casas por não conseguir pagar o financiamento
  • O número de suicídios cresceu assustadoramente
  • Necessitou de trilhões em ajuda (bailouts) governamental 
  • Expandiu a desigualdade social
  • Provocou ou exacerbou rachas no tecido social e político de vários países
O custo total, na verdade, ainda é incalculável, mas tem gente que argumenta que esta crise mundial provocou a onda política anti-establishment mundial de que o Srs. Bolsonaro e Trump fazem parte e até causou o Brexit.

Mas uma coisa é clara: ninguém foi preso. Ninguém. A maioria dos principais banqueiros envolvidos sequer perderam seus empregos e seus colegas foram chamados para limpar a bagunça que fizeram da forma mais conveniente para eles. As raposas limparam o galinheiro.

Dez anos depois, ninguém teve que admitir culpa criminal; os bancos, juntos com a administração de Trump, estão correndo para desmontar as reformas mequetrefes feitas para prevenir a próxima crise; executivos continuam ganhando bônus absurdos; bancos continuam oferecendo empréstimos de qualidade duvidosa. Ninguém aprendeu nada.

Isso, meus amigos, é corrupção de primeira linha. Isso é corrupção legalizada, o tipo que mais rende. E o sistema americano é desenhado para facilitar e perpetuar esse tipo de golpe. É corrupção 2.0 (ou 3.0, perdi a conta já).

Brasileiros têm muita razão em ficarem indignados com desgovernança, pilantragem, canalhice etc. Compartilho o sentimento. Mas não se engane em acreditar que o Brasil está ganhando o campeonato da corrupção. Aliás, esta semana a Libéria anunciou que "perdeu" 5% do seu PIB (estão provavelmente nos bolsos de seus políticos). 

Tem corruptos em todo canto, para todos os gostos. A pergunta-chave é se, depois de serem desmascarados, o país e o sistema têm a força e vontade para punir e se reformar. Nos EUA, aparentemente, a resposta é não. Além disso, políticos como Trump conseguiram capitalizar o caos enquanto só pioram a situação. No Brasil, a corrupção também gerou seus candidatos de respostas fáceis, rápidas e violentas. A gente vai descobrir em algumas semanas se o povo acha que eles são a solução. Talvez é melhor você jair se acostumando…


Editor geral


Fonte: The Intercept Brasil, 22/09/2018


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