E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão essenciais quanto a verdade?
E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão
essenciais quanto a verdade?
OSWALDO GIACOIA
JUNIOR*
19/02/2017
RESUMO O autor analisa o atual fenômeno de relativização da verdade à luz
de conceitos como o perspectivismo nietzschiano. Ele sustenta que, num cenário
de produção e consumo ininterruptos de informação, a ambiguidade do conteúdo
difundido parece ser pré-requisito para despertar o interesse do público e
fidelizá-lo.
Integram o cortejo dos espectros que rondam Donald Trump,
presidente dos Estados Unidos, certas noções vagas como "pós-verdade"
e "cultura pós-factual", as quais, a despeito de sua fluidez,
aparecem no debate público como se fossem conceitos filosóficos.
Ambas designam a poluição da mídia por notícias falsas, ou "fake news", e
geram uma transformação nas relações entre verdade e mentira. Já não se
pergunta simplesmente se uma notícia é falsa ou verdadeira, mas em que consiste
a noção de verdade de uma informação. Ou seja, a própria ideia de verdade surge
como um problema.
Declarações ambíguas, enviesadas, enganosas ou derivadas de enganos
são na prática equiparadas a mentiras inventadas deliberadamente pelos mais
diversos motivos: ganhar dinheiro de anunciantes, alcançar resultados
eleitorais específicos, formar e influenciar correntes de opinião, induzir
metas de políticas públicas e reforçar vínculos de identificação coletiva,
formatando maneiras de pensar e sentir em determinados segmentos sociais.
Avulta entre essas figuras a "disinformatzya": o
objetivo aqui não é defender uma bandeira particular ou atacar um adversário
determinado, mas causar desinformação. Inundam-se os suportes de difusão de
mensagens com afirmações falaciosas e distorções sensacionalistas no intuito de minar as bases de confiança tanto dos veículos
tradicionais de comunicação quanto das diferentes redes informáticas que se aninham na internet.
Trata-se, portanto, de solapar o crédito de informações que se
pretendem objetivas, como se não houvesse um critério para diferenciar a
notícia falsa da verdadeira. O leitor, largado num meio sabidamente repleto de
mentiras, pode nivelar por baixo e duvidar de todos os conteúdos publicados, ou
pode agarrar-se àqueles que lhe pareçam mais apropriados.
Que importa se, objetivamente, era possível medir o tamanho do
público presente à cerimônia de posse de Trump? O governo americano sentiu-se à
vontade para mencionar um número maior, iniciativa que depois uma assessora do
presidente definiu como a apresentação de "fatos alternativos".
Não existe nesse tipo de atitude nada que se confunda com a
postura filosófica do perspectivismo, segundo o qual o ponto de vista de cada
um interfere no modo de conhecer e apreender a verdade (que existe). Na era da
"pós-verdade", tudo se passa como se a verdade simplesmente não
existisse e todos os pontos de vista tivessem valor idêntico -como se a suposta
"verdade" divulgada pelo governo americano não fosse pior do que a
"verdade" factual apurada pelos jornais tradicionais.
Ora, se todas as "verdades" são igualmente válidas, se
cada cidadão pode escolher o ponto de vista de seu agrado, qual o sentido de um
debate público que busque o esclarecimento? Em outras palavras, está em jogo o
emprego sistemático de técnicas de propaganda para obliterar e entorpecer a
capacidade de pensar criticamente.
O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), falsamente
identificado como precursor desse relativismo ambientado na penumbra em que
todos os gatos são pardos, foi, em vez disso, o pensador que antecipou um
conflito eventual que pode nos ajudar a compreender as agruras do momento
problemático que atravessamos.
É conhecida sua formulação: e se o erro, a falsidade, o engano
revelarem-se, tanto quanto a verdade, essenciais como meios úteis para a
conservação da vida? Essa pergunta incomoda o pensamento filosófico desde que
Nietzsche teve a ousadia de colocá-la em toda sua extensão e profundidade.
Ora, os fenômenos que nos confrontam hoje podem ser interpretados
na chave hermenêutica que Nietzsche generosamente nos colocou nas mãos.
Vivenciamos um conflito entre verdade e condições de existência. De que
existência, porém, se trata aqui? Daquela que, como pensava Nietzsche, sempre
se produz em termos de relações de poder, de jogos de força em que encontram
apoio e expressão interesses vitais, desejos, temores, expectativas de
reconhecimento, aspirações de domínio e estratégias de resistência.
Identifiquemos, então, algumas das variáveis no debate atual sobre
a definição e as consequências das "fake news" para os rumos da
cultura e da política nas democracias contemporâneas.
VERIFICAÇÃO
Com a explosão dos novos meios de comunicação no ambiente digital,
distribuídos pela malha includente da sociedade global em arranjos de alta
capilaridade (rizomáticos, a rigor) e se reproduzindo em milhares de centros
virtuais dificilmente localizáveis e responsabilizáveis (nos sentidos ético e
jurídico), torna-se instável a possibilidade de verificação isenta de fatos,
bem como muito mais dinâmica e inventiva a produção e a circulação de
mensagens, seja qual for o seu teor.
Em sociedades lastreadas na troca de informações e na comunicação
sustentada por tecnologias de ponta, que se autorreplicam e formatam todos os
setores da vida -economia, política, educação, cultura etc.-, os interesses
estratégicos e as condições de existência estão estreitamente vinculados às
possibilidades, tecnologicamente facilitadas, de "tornar-comum" o
conteúdo veiculado, ou seja, de difundi-lo a um universo amplo de pessoas e de
reduzi-lo a sua dimensão mais simplória, num movimento que cria oportunidades
para o vulgar e o sensacionalista.
Com isso, torna-se possível inserir nessas redes tudo o que for
capaz de abastecê-las com eficiência, passando, então, a fazer parte da
"nutrição cotidiana" de cada um. Não importa tanto se o conteúdo é
"verdadeiro"; importa acompanhar "como a coisa rola". A
ambiguidade das mensagens é condição necessária para manter acesa a avidez por
"novidades", a reiteração da expectativa curiosa em espiral infinita.
Informações transformaram-se em mercadorias intercambiáveis num
arranjo cujos agentes são reduzidos ao denominador comum de consumidores e cuja
lógica operante é a da produção e da circulação mercantil.
Razão pela qual importa menos a pretensão de validade do que a
expectativa de realização de desejo que a informação venha a satisfazer. Por
isso adquire plausibilidade o pseudoargumento: afinal, o que é a verdade, já
que temos bons motivos para descrer de toda verificação factual?
A imputação de falsidade por parte de um opositor funciona como
seu contrário. Reforça convicções previamente firmadas, preconceitos arraigados
e impermeáveis a razões, mas dóceis às moções afetivas de autoidentificação.
Daí por que notícias inventadas na esteira do sensacionalismo
midiático não são desqualificadas, mas, ao contrário, reafirmadas e até
estimuladas pelos melhores esforços para desmascará-las; pois o que importa
para os atores e as organizações sociais interessados na proliferação desse
tipo de comunicação é manter acesa a chama da curiosidade que elas atiçam e
alimentar o falatório até suas derradeiras possibilidades de rendimento.
Uma explicação para isso encontra-se na lógica interna de tais
processos, infensos ao escrutínio crítico, já que o único critério que conta
são os acessos, ou indicadores quantitativos de consumo. Desenvolve-se uma
simbiose perfeita entre a comprovada demanda crescente dos clientes e o
rendimento auferido graças à divulgação de material publicitário.
Dado que os indicadores de acesso substituem os antigos critérios
de verificação, embute-se o risco de esse novo parâmetro gerar um círculo
vicioso: a quantidade de acessos quase sempre está em relação com o potencial
de atração contido na distorção da mensagem. Isso significa que o horizonte de
avaliação é o do impacto causado.
Para manter vivo o interesse pela informação vale tudo, inclusive
induzir e filtrar seletivamente as escolhas preferenciais do leitor por meio de
algoritmos que "adivinham" sites mais consentâneos com suas
tendências. As possibilidades e limites da apropriação político-ideológica dos
conteúdos, bem como aquelas de seu controle responsável, são virtualmente
indetermináveis, e isso a despeito de todas as catastróficas consequências que
esse desregramento pode causar, dentre as quais o estímulo ao cinismo
irresponsável, o desfecho eleitoral pernicioso e a destruição sistemática de
reputações.
A capacidade de pensar por si e de assumir responsabilidades por
opiniões e ações passa pela antiga e saudável desconfiança e pelo esforço de
nos distanciarmos do que se nos pretende impingir como última novidade, como
sinal dos tempos da "pós-verdade".
É possível que se oculte aí apenas um velho fetiche, uma manobra
diversionista para desviar a atenção e dispensar da reflexão, reforçando o
isolamento narcísico que parece estar vinculado à inclusão aparente e à conexão
em redes de comunicação com alcance planetário.
*OSWALDO
GIACOIA JUNIOR, 62, é professor titular de história da filosofia contemporânea e
ética na Unicamp.
FONTE: Aqui
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