Drauzio Varella: "Glúten, lactose e outras modas"
Glúten, lactose e outras modas
Drauzio Varella
04/02/2017
Nunca houve tantos modismos na dieta. Dieta sem glúten, sem
lactose, sem gordura, sem carboidratos, sem nada que venha dos animais e até
dietas sem alimentos que contenham DNA (pedras, talvez).
A história de nossos antepassados é a da miséria. Dos 6 milhões de
anos de nossa espécie, pelo menos 99,9% do tempo caçávamos, pescávamos,
coletávamos frutos e raízes e disputávamos carcaças de animais com outros
carnívoros famintos.
Há insignificantes 10 mil anos, o surgimento da agricultura criou
a oportunidade de abandonarmos a vida nômade e armazenarmos víveres para a
época das vacas magras.
Ainda assim, as epidemias de fome e a desnutrição chegaram até os
dias atuais. Na metade do século passado havia fome coletiva na França,
Inglaterra, Alemanha e demais países da Europa deflagrada.
Comida farta só chegou à mesa de grandes massas populacionais
depois da Segunda Guerra Mundial, graças à mecanização e aos avanços da
agricultura e da tecnologia de conservação de alimentos. Hoje, um brasileiro de
classe média tem acesso a refeições mais variadas e nutritivas do que as dos
nobres nos castelos medievais.
A fartura trouxe o exagero. Um cérebro com circuitos de neurônios
moldados em tempos de penúria não desenvolveu mecanismos de saciedade, capazes
de frear os impulsos viscerais despertados pela fome, antes de nos
empanturrarmos até passar mal de tanto comer.
Essencial à sobrevivência quando precisávamos acumular reservas
para os longos períodos de jejum que se sucediam, essa estratégia se voltou
contra nós.
Ao mesmo tempo, vão distantes os dias em que gastávamos energia
para alimentar a família. Pela primeira vez na história da humanidade,
desfrutamos o privilégio de ganhar o sustento sentados em cadeiras
confortáveis. A um toque de celular o disque-pizza nos entrega 5.000 calorias à
porta, sem sairmos do sofá.
Fartura e sedentarismo, gula e preguiça, criaram as raízes da
epidemia de obesidade que assola o mundo. Novembro de 2016 foi o primeiro mês
dos tempos modernos em que a expectativa de vida diminuiu em relação à do mês
anterior, nos Estados Unidos.
Seguimos pelo mesmo caminho. A continuar nesse passo, a obesidade
e a vida sedentária farão nossos filhos viverem menos do que nós.
Sem disposição nem coragem para encarar a realidade de que comemos
mais do que o necessário e andamos menos do que deveríamos, procuramos uma
saída mágica que nos mantenha saudáveis.
Inventamos teorias mirabolantes que a internet divulga com tal
velocidade que se transformam em ideologias com manadas de defensores
ardorosos: carne é veneno, nenhum animal adulto toma leite, glúten engorda e
incha, suco de berinjela reduz colesterol, e tantas outras.
É desperdício de tempo e risco de perder amigos questionar essas
crenças. Não adianta dizer que nossos antepassados não teriam sobrevivido não
fosse a carne, que alimentos com glúten costumam conter carboidratos simples
com índices glicêmicos elevados, que a coitada da berinjela jamais teve a
pretensão de proteger alguém contra o ataque cardíaco e que onças adultas não
tomam leite pela mesma razão que não bebem chope nem água encanada.
Para confundir ainda mais, estudos com resultados que exigiriam
interpretações estatísticas cautelosas e confirmação em pesquisas mais
elaboradas ganham destaque nas mídias como se apresentassem conclusões
definitivas. Num dia, o ovo é uma bomba de colesterol prestes a explodir as
coronárias; no outro, asseguram que tem alto valor nutritivo. A carne de porco
que já foi a mãe de todos os males está reabilitada, a de boi enfrenta
suspeitas.
A confusão acontece porque esses estudos costumam ser
observacionais. Neles, são analisadas as características dietéticas de uma
população e as enfermidades que a afligem. Em ciência, publicações desse tipo
são consideradas apenas geradoras de hipóteses. Para confirmá-las são
fundamentais os estudos prospectivos, randomizados, muito mais complexos,
dispendiosos e demorados.
Perdido na selva de informações desencontradas, o que você deve
fazer, leitor? Coma frutas, saladas e verduras com liberalidade; do resto, de
tudo um pouco. Procure comer o que sua avó considerava comida.
FONTE: Aqui
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