"Girassol da madrugada" - Mário de Andrade
Girassol da madrugada
I
De uma cantante alegria onde riem-se
as alvas uiaras
te olho como se deve olhar,
contemplação,
e a lâmina que a luz tauxia de
indolências
É toda um esplendor de ti, riso
escolhido do céu.
Assim. Que jamais um pudor te
humanize. É feliz
Deixar que o meu olhar te conceda o
que é teu,
Carne que é flor de girassol! Sombra
de anil!
Eu encontro a mim mesmo uma espécie
de abril
Em que espalha o teu sinal, suave,
perpetuamente.
2
Diga ao menos que nem você quer mais
desses gestos traiçoeiros
Em que o amor se compõe feito uma
luta;
Isso trará mais paz, porquanto o
caminho foi longo,
Abrindo o nosso passo através dos
espelhos maduros.
Você não diz porém o vosso corpo está
delindo no ar,
Você apenas esconde os olhos no meu
braço e encontra a paz na escuridão.
a noite se esvai lá fora serena sobre
os telhados,
Enquanto o nosso par aguarda ,
soleníssimo,
Radiando a luz, nesse esplendor dos
que não sabem mais para onde ir.
3
Si o teu perfil é puríssimo, si os
teus lábios
São crianças que se esvaecem no
leite,
Si é pueril o teu olhar que não
reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na
direção do futuro.
Eu sei que tu sabes que eu nem sei si
tu sabes,
Em ti se resume a perversa e
imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas
só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só para que o sono passe, e me
acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa
do sorriso.
4
Não abandonarei jamais de noite as
tuas carícias,
De dia não seremos nada e a ambições
convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da
poeira
Em que o sol chapeará torvelins
uniformes.
E voltarei sempre de noite às tuas
carícias,
E serão búzios e bumbas e tripúdios
invisíveis
Porque a Divindade muito naturalmente
virá.
Agressiva Ela virá sentar em nosso
teto,
E seus monstruosos pés pesarão sobre
nossas cabeças,
De noite, sobre nossas cabeças
inutilizadas pelo amor.
5
Teu dedo curioso me segue lento no
rosto
Os sulcos, as sombras machucadas por
onde a vida passou.
Que silêncio, prenda minha... Que desvio triunfal da verdade,
Que círculos vagarosos na lagoa em
que uma asa gratuita roçou...
Tive quatro amores eternos...
O primeiro era uma donzela,
O segundo... eclipse, boi que fala,
cataclisma,
O terceiro era a rica senhora,
O quarto és tu... E eu afinal me
repousei dos meus cuidados.
6
Os trens de ferro estão longe, as
florestas e as bonitas cidades,
Não há senão Narciso entre nós dois,
lagoa
Já se perdeu saciado o desperdício
das uiaras,
Há só meu êxtase pousando devagar
sobre você.
Oh que pureza sem impaciência nos
calma
Numa fragância imaterial, enquanto os
dois corpos se agradam,
Impossíveis que nem a morte e os bons
princípios.
Que silêncio caiu sobre a vossa
paisagem de excesso dourado!
Nem beijo, nem brisa...Só, no antro
da noite, a insônia apaixonada
Em que a paz interior brinca de ser
tristeza.
7
A noite se esvai lá fora serena sobre
os telhados
Num vago rumor confuso de mar e asas
espalmadas,
Eu, debruçado sobre vossa perfeição,
num cessar ardentíssimo
Agora pouso, agora vou beber vosso
olhar estagnado, oh minha lagoa!
Eis que ciumenta noção de tempo,
tropeçando em maracás,
Assustas guarás, colhereiras e briga
com os arlequins,
Vem chegando a manhã. Porém, mais
compacta que a morte,
para nós é a sonolenta noite que
nasce detrás das carícias esparsas.
Flor! Flor!...
Graça dourada!...
Flor...
Mário de Andrade