Olhamo-nos nos olhos
Olhamo-nos nos olhos pela internet.
Eu transmito-te este domingo à tarde,
a voz do vizinho através da parede.
Tu transmites-me a distância que
existe
depois do que consigo ver pela
janela.
Durante a noite mudou a hora e, no
entanto,
continuamos no tempo de ontem.
Como é raro este domingo, não podemos
garantir que amanhã seja
segunda-feira.
O futuro perdeu-se no calendário,
existe
depois do que conseguimos ver pela
janela.
O futuro diz alguma coisa através da
parede,
mas não entendemos as palavras.
Lavamos as mãos para evitar certas
palavras.
E, mesmo assim, neste tempo raro,
repara:
tu e eu estamos juntos neste verso.
O poema é como uma casa, tem paredes
e janelas, é habitado pelo presente.
Olhamo-nos nos olhos pela internet,
estamos verdadeiramente aqui.
O poema é como uma casa,
e a casa protege-nos.
José Luís Peixoto
(29 de Março de 2020)