Avanços, recuos e desafios do país do futuro
Carta a Biden: de que lado o sr. estará ao anoitecer
(de novo) no Brasil? |
Jamil Chade, do UOL – 24/05/2022 |
Senhor Biden, Existem momentos na vida
de uma sociedade que definem o destino de nossos sonhos. No Brasil em 2022,
vivemos este momento. A escolha não é difícil. Mas, nesta encruzilhada,
corremos o sério risco de que a democracia seja asfixiada e que volte a ser
torturada nos calabouços de um país cuja história se entrelaça com golpes de
estado, autogolpes e rupturas espantosas. Vocês, porém, têm uma
oportunidade histórica. Se em 1964 a opção da Casa Branca sob o democrata
Lyndon Johnson foi por chancelar um golpe de estado que abriu uma noite
escura que durou duas décadas, desta vez vocês poderão seguir um caminho bem
diferente. Redenção? Não. Afinal,
como curar as feridas daqueles tantos torturados e daquelas famílias que
perderam seus filhos? Como recuperar anos de desilusão e de adiamento do
futuro? O senhor, nesses
próximos meses, terá duas opções. A primeira delas é a de ficar ao lado da
democracia. E de forma intransigente. Isso significa denunciar o desmonte das
instituições, não reconhecer a legalidade de um eventual golpe e nem
considerar o governo a ser instaurado como interlocutor legítimo. Antes que seus generais
de plantão fiquem entusiasmados, não estamos convidando o senhor para uma
invasão para nos salvar. Mas tanto eu como o senhor sabemos que parte do êxito
de um golpe vem não apenas das armas, e sim do apoio internacional que o
ditador de plantão possa ter. Quando o senhor venceu as
eleições, o mundo democrático se lançou numa corrida para reconhecer os
resultados das urnas e, assim, blindá-lo do forte movimento de contestação
por parte de seu rival, Donald Trump. Um dos poucos que fez eco
ao argumento dos golpistas americanos foi Jair Bolsonaro. Agora, chegou a vez de a
democracia ser testada em outra parte do nosso hemisfério. Ninguém no Brasil
tem ilusões sobre o que vocês representam e não caímos na ladainha de que
vocês "exportam" a democracia. Vocês foram os únicos a
jogar uma bomba atômica sobre civis, não conseguem superar o profundo racismo
instaurado desde 1619, invadiram países, derrubaram governos que não eram
simpáticos aos seus interesses, espionaram os telefones de seus aliados e
chocaram o mundo com cenas de tortura em prisões secretas. Sim, a lista é
longa. E por isso nos preocupamos. De fato, a segunda
opção que está diante do senhor é seguir a coerência histórica dos EUA e, em
nome de interesses econômicos e da geopolítica, acomodar o desmonte que
vivemos hoje dos direitos humanos e da democracia no Brasil. Isso, senhor
Biden, seria recebido como uma chancela por parte do governo de Jair
Bolsonaro de que pode seguir com seu projeto de destruição. Presidente, um eventual
êxito por parte daquelas pessoas que tentaram profanar o Capitólio
representaria um terremoto político no mundo. Ainda que em outra escala, a
eleição brasileira em 2022 também terá um impacto global. O que está em jogo
no Brasil não é apenas o destino de 210 milhões de pessoas. Um golpe em meu
país consolidará a tendência autocrática no planeta e irá reforçar movimentos
que questionam liberdades fundamentais. Hoje, a democracia vive
seu momento mais desafiador desde o final da Guerra Fria. Apenas 6% da
população mundial se beneficia de tal sistema de maneira plena. Se o modelo
Bolsonaro prosperar, quem poderá parar imitadores de péssima qualidade nos
países vizinhos? Se o modelo Bolsonaro vingar, será o seu governo que terá de
enfrentar uma região ávida pelo retorno de seu próprio rival, Donald Trump. Se no início desta carta
eu fiz referências ao papel que os EUA tiveram no golpe de 1964, houve também
um episódio radicalmente diferente. Em 1978, seu velho
conhecido Jimmy Carter realizou uma viagem ao Brasil e, driblando os
militares em meu país, colocou Dom Paulo Evaristo Arns no carro que o levaria
no último dia de sua visita ao aeroporto do Galeão. O trajeto de 46
quilômetros foi a ocasião que Arns precisava para fazer denúncias de violações
cometidas pelo regime militar, o mesmo aplaudido por Bolsonaro. Foi uma conversa franca.
Arns perguntou a Carter o que ele esperava da Igreja na luta contra a
repressão. Seu colega foi explícito em sua crítica, alertando que, em alguns
lugares, "a Igreja não fez o que deveria fazer". Segundo ele, os
defensores de direitos humanos "sofrem restrições" da Igreja, e não
apoio. Já o cardeal apresentou
um memorando com três pontos e que deixava claro que tinha suas sérias
reservas à política externa americana. Arns queria demonstrar que o regime
militar apenas existiu graças ao apoio americano e indicou que estava na hora
então de Washington desfazer o que havia começado. Ele não se limitaria ao
memorando. Outra carta entregue pelo brasileiro a Carter era um apelo secreto
assinado por ele, pelo cardeal asiático Stephen Sou HuanKim e pelo bispo
africano Donald Lamont. No documento, os líderes religiosos alertavam que não
se silenciariam mais diante da opressão econômica e política vivida por
"países inteiros". Os religiosos ainda
criticaram a "tortura institucionalizada" existente "em todo o
mundo" e concluíram com um ataque direto aos Estados Unidos. "Não
podemos ficar quietos, nem queremos, enquanto o egoísmo de alguns países e
grupos impedem a construção de um mundo mais humano, em que cada pessoa pode
viver com dignidade", disseram. Apesar de não ser um
consenso, há quem argumente que a insistência de Carter em tratar de direitos
humanos contribuiu em levar o Brasil a uma outra direção nos anos seguintes.
O que não se pode negar é que, ao colocar Arns para dentro de seu carro e
aceitar o diálogo, seu colega demonstrou caráter. Senhor presidente, Um outro velho amigo do
senhor e que eu também admiro muito, John Lewis, disse que a democracia não é
um estado. É um ato. Lembre-se disso, portanto, quando for avaliar as opções
que terá diante do Brasil. Qualquer arranjo
hipócrita que o senhor sugerir às intenções nefastas do governo de Jair
Bolsonaro destruirá o pouco que resta de nossos sonhos. No fundo, o senhor sequer
tem opção se quiser de fato manter suas credenciais de democrata. Minha geração cresceu com
a falsa premissa de que a democracia estava em nossa certidão de nascimento.
Não era verdade. No fundo, nem começamos a construi-la. Isso apenas virá
quando deixarmos de ser colonizados, quando houver justiça social, quando a
população negra tenha seu devido espaço. Mas para que o sonho prospere,
evitar um golpe de estado no Brasil neste momento será fundamental. Em 2022, vocês
têm uma oportunidade histórica. Não a desperdicem. Pelo amor aos meus filhos,
pelo amor aos teus netos. Saudações
democráticas, Jamil |
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