sábado, 29 de julho de 2023

Rússia-Ucrânia: Onde é que tudo isto vai acabar?

 




No dia 24 de junho de 1812, a Grande Exército do imperador Napoleão, com cerca de 700 000 homens, atravessou o rio Nieman (Nemunas), na atual Lituânia, em direção ao Império Russo. Tinha começado a invasão da Rússia, liderada pelos franceses, o que marcou uma época. Para ler o texto de Victor Hill clique aqui


Jamil Chade: No Mundial Feminino, o que está em jogo é a liberdade


Prezados torcedores,


Esta carta é direcionada aos homens que, a cada fim de semana, se aglomeram pelos estádios do país ou diante das televisões para ver, como eu, seu time do coração. Como diria o cronista, em dia de clássico, a vida e até a morte ficam suspensas pelos 90 minutos de jogo.


Mas deixe-me contar onde de fato ocorre uma partida definidora de nossa geração.


Certa vez, numa das festas de gala da Fifa, as jogadoras que concorriam ao prêmio de melhor do mundo aguardavam nos camarins para serem chamadas ao palco. E eis que entra pela sala o todo-poderoso chefe da entidade, Sepp Blatter.


Marta, que naquela época já havia vencido cinco troféus de melhor do mundo e era um rosto conhecido por todos, não estava no local. Mas a jogadora Abby Wambach constatou que o dirigente, naquele ambiente privado e apenas com as maiores estrelas do esporte, pensou que estava falando com a brasileira. Na verdade, ele conversava com Sarah Huffman, a companheira de Wambach.


Obviamente essa situação constrangedora não se limita ao futebol e é apenas o resultado de um patriarcado que, por séculos, fez questão de silenciar as mulheres. Nos arquivos guardados como verdadeiro tesouro na sede do COI, na Suíça, os escritos do celebrado barão Pierre de Coubertin são considerados como documentos que fundam o movimento olímpico. Mas basta percorrer as páginas escritas à mão para descobrir que ele não deixava espaço para dúvidas: não haveria motivo para incluir as mulheres nos Jogos, salvo para aplaudir a entrega dos prêmios aos homens.


Para o pai das Olimpíadas da Era Moderna, o movimento que ele criou deveria focar exclusivamente em promover os Jogos e apostar na "única exaltação do atletismo masculino, baseado no internacionalismo, com base na justiça e no cenário artístico, com os aplausos das mulheres como único prêmio".


Coubertin chegou a refletir sobre a realização de um evento separado para mulheres. Mas deixou claro que seriam "semiolimpíadas" e que não teriam nem apelo nem interesse. "Não hesitaria em dizer que não seria apropriado", disse, em 1912. E ele foi além, indicando que eventos femininos "não são cenas que multidões gostariam de ver em Jogos".


Cem anos depois, e apesar de alguns avanços, estamos distantes de uma situação de igualdade. Em 2016, durante a Olimpíada no Rio, uma delegação saudita me procurou para conversar e me mostrar os planos para abrir os esportes para as mulheres. Perguntei se isso valeria para todas as modalidades. Hesitaram. E, então, fui direto: "Uma saudita pode praticar surf?" A resposta foi imediata: "Obviamente que não".


Lembro-me do dia em que, na Fifa, os cartolas estabeleceram que cada federação nacional deveria ter pelo menos uma mulher em seu conselho. Nos bastidores, ouvimos dos dirigentes seus planos secretos para burlar a regra: no lugar de "pelo menos uma mulher" em cada órgão executivo do futebol, a lei passaria a ser "no máximo uma mulher".


Na Inglaterra, que chegou até as semifinais na última Copa, um relatório publicado na semana passada revelou que a diferença de salário entre uma jogadora e um jogador de primeira divisão pode ser de cem vezes.


Já um levantamento do sindicato dos jogadores mostrou que dois terços das atletas na atual Copa tiveram de pegar férias não remuneradas de seus empregos para poder competir.


Mas a realidade, senhores, é que o futebol e o Mundial são apenas espelhos de uma situação profundamente intolerável. E escrevo a nós todos com uma pergunta: onde estamos nesse debate?


Em todo o mundo, os dados oficiais apontam 26% das mulheres com 15 anos ou mais já foram submetidas à violência física ou sexual por um marido ou parceiro íntimo pelo menos uma vez na vida. Isso representa 650 milhões de mulheres. Insisto: esses são apenas os dados oficiais. Ou seja, a ponta de um iceberg.


Em 2021, quase uma em cada cinco mulheres jovens se casou antes dos 18 anos de idade. Em certas regiões da África, essa taxa chega a 35%. Atualmente, pelo menos 200 milhões de meninas e mulheres foram submetidas à mutilação genital feminina.


Em 1º de janeiro de 2022, a participação global de mulheres nos Parlamentos Nacionais chegou a 26,2%. Nesse ritmo, seriam necessários mais 40 anos para que mulheres e homens fossem representados igualmente.


Em 2022, o Fórum Econômico Mundial estimou que serão necessários 132 anos para garantir uma igualdade plena de gênero.


Em 2020, em 57 países, a violência doméstica não era considerada um crime.


Em 41 países, filhos e filhas não têm os mesmos direitos de herança e, em 43 países, as viúvas não têm os mesmos direitos de herança que os viúvos.


Em 83 países, os períodos de ausência devido a cuidados com os filhos não são contabilizados nos benefícios previdenciários. E eu pergunto a vocês: e todos os outros dias nos quais nossas mães, avós e irmãs abriram mão de suas vidas por cuidar?


Ainda hoje, 61% dos homens consideram que o trabalho doméstico é tão recompensador para uma mulher como uma carreira profissional.


45% das mulheres não têm a palavra final nas escolhas sobre sua própria saúde sexual e reprodutiva, enquanto uma mulher morre a cada 9 minutos devido a um aborto inseguro. Mais uma vez insisto: esses são apenas os dados oficiais.


A vida e a morte estão sempre em jogo para milhões de garotas e mulheres. Repito aqui a perguntar: E nós, onde estamos?


Senhores,


Esta Copa do Mundo é por si só um evento político. Talvez no sentido mais profundo dessa palavra.


O que está em jogo não é apenas quem ficará com um troféu. Mas o espaço legítimo, a igualdade e a dignidade de uma parcela de 50% da população mundial.


Se o Mundial é em parte um sucesso comercial, vamos ser honestos aqui. Tal fenômeno está acontecendo "apesar de nós".


Desembarcar no século 21 não é aprimorar o VAR. É garantir às mulheres seu lugar de direito, dentro e fora de campo. E não se trata de uma concessão.


Ao contrário do que pregam aqueles que que insistem que futebol e política não se misturam, empunhar uma bandeira e vestir a camisa da seleção é um ato essencialmente político nesta Copa do Mundo. Um gesto de insurreição contra um sistema que ainda viola, asfixia e promove o controle político, social e sexual do corpo feminino.


Um corpo que desde a infância precisa aprender a driblar pelo simples fato de ser mulher.


Em jogo, neste Mundial, está a liberdade.


De que lado desta partida nós estamos?


Saudações democráticas,


Jamil Chade



 

Fonte: UOL, 29/07/2023




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