Rússia-Ucrânia: Onde é que tudo isto vai acabar?
Jamil Chade: No Mundial Feminino, o que está em jogo é a liberdade
Prezados
torcedores, Esta
carta é direcionada aos homens que, a cada fim de semana, se aglomeram pelos
estádios do país ou diante das televisões para ver, como eu, seu time do
coração. Como diria o cronista, em dia de clássico, a vida e até a morte
ficam suspensas pelos 90 minutos de jogo. Mas
deixe-me contar onde de fato ocorre uma partida definidora de nossa geração. Certa
vez, numa das festas de gala da Fifa, as jogadoras que concorriam ao prêmio
de melhor do mundo aguardavam nos camarins para serem chamadas ao palco. E
eis que entra pela sala o todo-poderoso chefe da entidade, Sepp Blatter. Marta,
que naquela época já havia vencido cinco troféus de melhor do mundo e era um
rosto conhecido por todos, não estava no local. Mas a jogadora Abby Wambach
constatou que o dirigente, naquele ambiente privado e apenas com as maiores
estrelas do esporte, pensou que estava falando com a brasileira. Na verdade,
ele conversava com Sarah Huffman, a companheira de Wambach. Obviamente
essa situação constrangedora não se limita ao futebol e é apenas o resultado
de um patriarcado que, por séculos, fez questão de silenciar as mulheres. Nos
arquivos guardados como verdadeiro tesouro na sede do COI, na Suíça, os
escritos do celebrado barão Pierre de Coubertin são considerados como
documentos que fundam o movimento olímpico. Mas basta percorrer as páginas
escritas à mão para descobrir que ele não deixava espaço para dúvidas: não
haveria motivo para incluir as mulheres nos Jogos, salvo para aplaudir a
entrega dos prêmios aos homens. Para o
pai das Olimpíadas da Era Moderna, o movimento que ele criou deveria focar
exclusivamente em promover os Jogos e apostar na "única exaltação do
atletismo masculino, baseado no internacionalismo, com base na justiça e no
cenário artístico, com os aplausos das mulheres como único prêmio". Coubertin
chegou a refletir sobre a realização de um evento separado para mulheres. Mas
deixou claro que seriam "semiolimpíadas" e que não teriam nem apelo
nem interesse. "Não hesitaria em dizer que não seria apropriado",
disse, em 1912. E ele foi além, indicando que eventos femininos "não são
cenas que multidões gostariam de ver em Jogos". Cem anos
depois, e apesar de alguns avanços, estamos distantes de uma situação de
igualdade. Em 2016, durante a Olimpíada no Rio, uma delegação saudita me
procurou para conversar e me mostrar os planos para abrir os esportes para as
mulheres. Perguntei se isso valeria para todas as modalidades. Hesitaram. E,
então, fui direto: "Uma saudita pode praticar surf?" A resposta foi
imediata: "Obviamente que não". Lembro-me
do dia em que, na Fifa, os cartolas estabeleceram que cada federação nacional
deveria ter pelo menos uma mulher em seu conselho. Nos bastidores, ouvimos
dos dirigentes seus planos secretos para burlar a regra: no lugar de
"pelo menos uma mulher" em cada órgão executivo do futebol, a lei
passaria a ser "no máximo uma mulher". Na
Inglaterra, que chegou até as semifinais na última Copa, um relatório
publicado na semana passada revelou que a diferença de salário entre uma
jogadora e um jogador de primeira divisão pode ser de cem vezes. Já um
levantamento do sindicato dos jogadores mostrou que dois terços das atletas
na atual Copa tiveram de pegar férias não remuneradas de seus empregos para
poder competir. Mas a
realidade, senhores, é que o futebol e o Mundial são apenas espelhos de uma
situação profundamente intolerável. E escrevo a nós todos com uma pergunta:
onde estamos nesse debate? Em todo o
mundo, os dados oficiais apontam 26% das mulheres com 15 anos ou mais já
foram submetidas à violência física ou sexual por um marido ou parceiro
íntimo pelo menos uma vez na vida. Isso representa 650 milhões de mulheres.
Insisto: esses são apenas os dados oficiais. Ou seja, a ponta de um iceberg. Em 2021,
quase uma em cada cinco mulheres jovens se casou antes dos 18 anos de idade.
Em certas regiões da África, essa taxa chega a 35%. Atualmente, pelo menos
200 milhões de meninas e mulheres foram submetidas à mutilação genital
feminina. Em 1º de
janeiro de 2022, a participação global de mulheres nos Parlamentos Nacionais
chegou a 26,2%. Nesse ritmo, seriam necessários mais 40 anos para que
mulheres e homens fossem representados igualmente. Em 2022,
o Fórum Econômico Mundial estimou que serão necessários 132 anos para
garantir uma igualdade plena de gênero. Em 2020,
em 57 países, a violência doméstica não era considerada um crime. Em 41
países, filhos e filhas não têm os mesmos direitos de herança e, em 43
países, as viúvas não têm os mesmos direitos de herança que os viúvos. Em 83
países, os períodos de ausência devido a cuidados com os filhos não são
contabilizados nos benefícios previdenciários. E eu pergunto a vocês: e todos
os outros dias nos quais nossas mães, avós e irmãs abriram mão de suas vidas
por cuidar? Ainda
hoje, 61% dos homens consideram que o trabalho doméstico é tão recompensador
para uma mulher como uma carreira profissional. 45% das
mulheres não têm a palavra final nas escolhas sobre sua própria saúde sexual
e reprodutiva, enquanto uma mulher morre a cada 9 minutos devido a um aborto
inseguro. Mais uma vez insisto: esses são apenas os dados oficiais. A vida
e a morte estão sempre em jogo para milhões de garotas e mulheres. Repito
aqui a perguntar: E nós, onde estamos? Senhores, Esta Copa
do Mundo é por si só um evento político. Talvez no sentido mais profundo
dessa palavra. O que
está em jogo não é apenas quem ficará com um troféu. Mas o espaço legítimo, a
igualdade e a dignidade de uma parcela de 50% da população mundial. Se o
Mundial é em parte um sucesso comercial, vamos ser honestos aqui. Tal fenômeno
está acontecendo "apesar de nós". Desembarcar
no século 21 não é aprimorar o VAR. É garantir às mulheres seu lugar de
direito, dentro e fora de campo. E não se trata de uma concessão. Ao
contrário do que pregam aqueles que que insistem que futebol e política não
se misturam, empunhar uma bandeira e vestir a camisa da seleção é um ato
essencialmente político nesta Copa do Mundo. Um gesto de insurreição contra
um sistema que ainda viola, asfixia e promove o controle político, social e
sexual do corpo feminino. Um corpo
que desde a infância precisa aprender a driblar pelo simples fato de ser
mulher. Em jogo,
neste Mundial, está a liberdade. De que
lado desta partida nós estamos? Saudações
democráticas, Jamil
Chade |
Fonte:
UOL, 29/07/2023
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