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Carta aos intolerantes: seus muros só refletem seus medos
Nunca se
construiu tantos muros como no século 21 Senhores, Nunca
estivemos tão conectados como hoje. Nunca foi tão barato falar com o amor de
sua vida, que vive do outro lado das montanhas. Nunca foi tão fácil e, ao
mesmo tempo, superficial viajar. Mas escrevo
essa carta com uma constatação: nunca construímos tantos muros como nos
últimos 20 anos. Ao final da
Segunda Guerra Mundial, existiam sete muros em fronteiras nacionais. Ao final
da Guerra Fria, em 1989, existiam 15. Em 2019, existiam 77 muros. Desde
2000, construímos mais quilômetros de muros que em qualquer outro momento da
história. Foram 26 mil km. Em 2017, um
levantamento revelou que existiam 65 outros muros em construção ou sendo
planejados. Se concluídos, eles levariam o mundo a contar com mais 40 mil km
de muros. Suficiente para dar a volta na terra. Muros são
certamente obras físicas. Mudam paisagens. Fazem sombra onde não existia. Mas seu
poder não vem nem das pedras colocadas uma sobre as outras, e nem dos
cartazes com avisos aterrorizantes do que ocorreria se alguém ousar
saltá-los. O poder do
muro é outro. Ele ergue e legitima uma nova realidade mental. Num momento
marcado pelas incertezas, dúvidas, guerras, pandemias, desinformação e
transformações tecnológicas, o muro cumpre a mitologia de uma suposta
estabilidade. Massivo,
firme e permanente aos iludidos, silencioso aos surdos. Impossível de ser
deslocado ou flexibilizado aos cartesianos. É a vitória
da engenharia e suas certezas matemáticas contra os fluxos da vida humana. Ao cruzar
dezenas de fronteiras ao longo dos últimos 20 anos, eu cheguei à constatação
de que muros não são construídos para garantir segurança. São atos
populistas, em grande parte bradados por charlatães e vendedores de ilusão. Muros
revelam o estado psíquico de uma sociedade. Se oficialmente são erguidos
contra bárbaros, imigrantes, terroristas, drogas e armas, o que eu reparei é
que são, acima de tudo, construídos contra o medo, contra ansiedades e contra
o diferente. O objeto
central dos muros não está fora deles. Está dentro. É ali que parece estar a
sombra. Percorrer a
Europa é percorrer as ruínas e o que sobrou de muros erguidos ao longo da
história. Alguns são até patrimônio da Humanidade, protegidos pela Unesco. Um
muro protegido por uma entidade que representa a burocratização da utopia.
Haja incoerência. Eu mesmo
vivo ao lado de um muro medieval. E sempre que passo por ele, tento andar
leve, reduzir o passo para escutar o que ele tem para contar. Se escutarmos
bem, há, no fundo, algo fascinante sobre uma contradição que esses muros
trazem em si mesmos. De um lado,
eles escondem quem está supostamente protegido por suas pedras. Mas, quanto
mais alto, mais eles desnudam e mostram, naquelas sombras, os medos mais
secretos daquela sociedade. O muro é, essencialmente, um reconhecimento das
nossas vulnerabilidades, incoerências e injustiças. Existem
muitos motivos para se construir um muro. Há muros para impedir a entrada de
seres humanos em busca de liberdade. Outros, para não deixar que a população
daquele local saiba que existe liberdade fora. Existem
ainda, entre nós, os muros erguidos contra determinados grupos da sociedade,
mesmo quando eles são maioria. Existem ainda os muros contra aqueles que
buscam apenas um porto seguro para sobreviver ou ter o direito de sonhar. Seja
qual for seu objetivo, todos eles são feitos do mesmo cimento: a legitimação
institucional da diferença. A sombra
que produzem é feita da mesma escuridão: a intolerância. Antes de
ser erguido, o muro acima de tudo é mental. A
construção e destruição de muros sempre estiveram presentes no percurso da
Humanidade. Ao percorrer os diferentes muros, tentei sempre conhecer a
história daqueles que desafiam a obra de engenharia política. Parece que
quanto maior o muro, mais robusto ou mais impenetrável, maior a coragem
daqueles que se propõe derrubá-lo. Não nos
faltará essa coragem. Saudações
democráticas, Jamil |
Fonte:
UOL, 08/07/2023
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