sábado, 30 de julho de 2011

Modernidade e Holocausto


Bauman em “Modernidade e Holocausto” faz uma análise vasta e profunda, numa ousada empreitada para entender o Holocausto em aspectos até então desconsiderados, sobretudo, pela sociologia, levando-os a serem considerados como antiquestão. Isso pra o autor acarretou um silêncio nefasto sobre o holocausto e por conseguinte, sobre a humanidade.
Critica a episteme sociológica quando produz um conhecimento cujo discurso resultante não acolhe e desqualifica manifestações sociais fora do padrão das regularidades, transformadas em antiquestão. Nesse sentido, o discurso sociológico só pode ser entendido sob a socialização, ensinamento e aprendizado, o que Bauman chamou de pré-requisitos sistêmicos e funções societárias. Frente a esse quadro, Bauman o acusa de insensibilidade seletivos habituais, o que levou a um silêncio sobre o Holocausto, gerando sérias implicações na sua compreensão enquanto fenômeno sociológico, humano e histórico.
Essa “insensibilidade sociológica” aprisionada em seus próprios pressupostos não deu conta ou não quis dimensionar a gravidade do fenômeno, obscurecendo outras perspectivas para o seu entendimento. Encerrou o Holocausto como um fenômeno imoral, considerando-o, portanto, como uma ação desconforme às normas societariamente sancionadas. Bauman desconstrói tal argumento ao citar Hiroshima e o Gulag, fenômenos que para ele demonstraram inexoravelmente o quanto as explicações triviais da sociologia não eram suficientes. Enfatiza que esse dilema foi explicitado no julgamento de Nuremberg, pois os mesmos que mantinham o Gulag e haviam aniquilado Hiroshima seriam os responsáveis por julgar, acusar e condenar os autores do holocausto.
Tentando entender Bauman algumas perguntas devem ser pensadas: A que regras, a que ética e moralidade estavam submetidos os responsáveis pelo julgamento? Se o holocausto é imoral está isento de julgamento, entendimento? É possível julgá-lo? Ora, se o princípio que rege o entendimento do holocausto é a sua imoralidade, livra-se assim, a sociedade alemã e, por extensão, o ocidente de suas responsabilidades morais? É possível que apenas um grupo, uma parcela da sociedade, fosse capaz de levar uma nação e a conivência de grande parte do continente europeu e o restante do mundo a atitudes tão sintonizadas? Afinal, quem foi imoral? Não nos esqueçamos que a segunda guerra foi mundial.
Ao retirarmos o aval da sanção social do holocausto instalam-se dilemas tanto para a sociologia quanto para os juízos dos julgadores. Algumas problematizações são necessárias. Se o ser humano só se realiza enquanto tal, entrelaçado a um modelo sistêmico, logo, todos em princípio são responsáveis pelos processos sociais, sendo assim, é possível afirmar que, a sociedade alemã foi responsável pelo holocausto. Desse modo, torna-se sociologicamente improcedente a explicação do holocausto sem o aval social. Então, o que foi o holocausto, um desvio? Uma atipicidade? É possível compreendê-lo nessa perspectiva mesmo depois das cenas trazidas a público logo após a guerra? E os testemunhos dos sobreviventes? O seu caráter aniquilador pode ser visto apenas como uma escolha restrita a um grupo no poder? Como afirma Bauman, era imperioso que a sociologia enfrentasse esses dilemas, talvez assim, ela própria se beneficiasse enquanto ciência capaz de auto ressignificar-se frente as realidades que nos são impostas, e escapam às explicações tradicionais, e quem sabe, ter contribuído para que acontecimentos semelhantes não tivessem ocorrido.
Assim, considerar o holocausto como um fenômeno sociologicamente imoral, é não permitir a humanidade o direito a seu passado como forma de purificar-se e colocar em cheque a legitimidade do modelo das ciências humanas.
Nessa perspectiva olhemos o outro lado da moeda. Se partirmos do pressuposto que o holocausto teve o aval da sanção moral o dilema se alarga. Esse pressuposto atrelado ao corpo explicativo da sociologia, não a colocaria em julgamento, a sua legitimidade científica estaria imaculada, porém demonstraria o quanto o argumento da neutralidade científica é falacioso, desnudando de forma contundente esse perverso e velho álibe, que fundamenta práticas científicas que só serviram ao aniquilamento humano. Nesse sentido, iria corroborar de forma incontestável à exigência do posicionamento político de todo o mundo científico, contribuindo sobremaneira para o debate, além de iluminar outros caminhos possíveis para a humanidade. Nessa diretriz, manteria a coerência de seu corpo explicativo, e ainda abriria brechas irrefutáveis no entendimento do holocausto, além de substanciar para poder exigir a construção de juízos cujos argumentos estariam sedimentados no próprio tecido social, oferecendo a corte julgadora o fio necessário para guiar suas ações de modo que não ficassem à deriva, ora submetidos às suas próprias lógicas, em uma terra de ninguém, ou a acatar velhos valores ou serem guiados por uma crença religiosa. Sendo assim, o próprio modelo de sociedade ocidental seria julgado, o que para a humanidade seria transfigurador. Para Bauman essas dificuldades, ou as explicações aceitas realizaram a dupla proeza de condenar o réu e ao mesmo tempo absolver o mundo dos vencidos.
Bauman também alfineta sem piedade os historiadores, embora inclua-se à critica. Afirma que a paralisia dos historiadores na busca de explicações do holocausto resulta de uma simultaneidade e da interação de fenômenos completamente heterogêneos. Para o autor estes relatos marginalizados não permitem ver o que se olha, pois fica-se refém da heterogeneidade, da coexistência de coisas que nossa linguagem não admite que coexistam e da cumplicidade de fatores que os relatos dizem pertencerem a tempos ou épocas diferentes. Essa heterogeneidade não é um achado, mas uma suposição, que gera espanto, onde a compreensão é que deveria surgir e se faz necessária.
Fiel ao seu campo de pesquisa, a sociologia, buscando nesse discurso a compreensão do holocausto, apresenta uma nova categoria – a moralidade - como uma dimensão fundamental do fenômeno. Demonstra em sua análise como a racionalidade perpetrada pelo nazi/fascismo conseguiu manipular a pulsão moral, moralisando os atores sociais para o que chamou de mal, tornando a ação social adiaforética.
Para tanto parte das regularidades - padrões que possam tornar o comportamento das unidades resistente às pressões uniformizantes e, portanto autônomos face ao propósito coletivo da organização - como um aspecto definidor e decisivo da organização social. Os demais padrões, que não encaixam na homogeneidade são suprimidos, degradados, colocados fora da lei. Padrões mantidos pelo impulso moral e fonte de um comportamento autônomo do ponto de vista da organização são imprevisíveis, não se submetem a nenhum relacionamento que poderia ser monitorado, padronizado e codificado. A moralidade segundo Bauman citando Levinas, é um comportamento desencadeado pela mera presença do outro, como um rosto, isto é,uma autoridade sem força. A ação moral é qualquer coisa que se segue a responsabilidade quando nos defrontamos com o outro, diferente da ação desencadeada pelo medo da sanção ou pela promessa de recompensa, ela não traz sucesso e nem ajuda a sobreviver. Essa gratuidade dos atos morais não podem ser atraídos, seduzidos, subordinados, rotinizados. Desse modo, se a moralidade não pode ser racionalizada, deve ser abafada ou manipulada para se tornar irrelevante.
Isto posto, cabe perguntar: como a organização(sociedade), ou o nazismo conseguiu neutralizar, manipular a autonomia do comportamento moral? Bauman responde: através da heteronomia das racionalidades instrumentais e processuais. A gratuidade e a ausência de sanções do impulso moral são substituídas, deslocadas pela lei e o lucro. A conduta permitida aos atores só ocorre através da razão definida pelas regras de comportamento, entendida como a única categoria das ações autenticamente sociais, entenda-se racionais, e que portanto, os define como atores sociais. Todas as ações fora desse padrão são declaradas irracionais, não sociais e privadas.
Para Bauman essa racionalização da organização social cujo objetivo era manipular a pulsão moral gerando ações sociais adiaforéticas (indiferença) frente ao holocausto, foi possível mediante a uma série de arranjos complementares. Foi montada uma máquina desumanizante e desumanizadora, perpassada por uma hierarquia de comando e execução, cuja burocratização removeu os efeitos da ação para além do alcance dos limites morais. Entre a ação e seus efeitos uma rede de mediação separava o individuo das fontes conscientes da intenção tanto quanto dos efeitos últimos da ação, produzindo a anulação moral do seu ato e mesmo submetidos às conseqüências de seus atos nunca os relacionava à sua ação, o que denota a anulação de todo conflito pessoal de decência moral. Essa invisibilidade da própria teia burocrática que obscurece a mira, a localização, e que portanto, não materializa quem pode ser responsabilizado pelo processo anula a possibilidade da reação tanto da vítima como do algoz imediato. É o que Hannah Arendt descreveu como regra de ninguém.
O segundo arranjo consistia em submeter os objetos da ação em uma posição na qual não podem desafiar o ator na sua qualidade de demandas morais. Portanto era extirpar do ator qualquer possibilidade de conflito moral. O outro que não tem existência não demanda nenhum impacto moral, ele é o nada.
O terceiro arranjo consistia em destruir o objeto da ação, desumanizá-lo, coisificá-lo, destruí-lo como pessoa, transformando-o em traços , características. Não é concebido como sujeito de totalidade, e sendo assim, está desprovido de subjetividade moral.
A contribuição de Bauman no entendimento do holocausto é primorosa. Entendê-lo como um fenômeno arquitetado, consolidado na e pela modernidade obriga-nos a reflexões que exigem que saíamos do estado de torpor e encaremos a necessidade de uma ética onde a humanidade ocupe o trono vagado por deus. Se deus está morto, graças a deus, a humanidade ainda se mantêm vigorosa, mesmo convivendo com acontecimentos tão aterradores que nos levam a nulidade. No entanto, ainda somos capazes, temos o poder de arquitetar sonhos, sobretudo podemos fazer escolhas cujas ações nos coloquem no trono de deus, de modo que essa ocupação semeie em demasia o profundo do humano, realidade, na qual ainda ensaiamos, os primeiros passos.

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